Há duas semanas, a portuguesa Joana Vasconcelos — uma das artistas plásticas mais incensadas da Europa — veio ao Brasil para prospectar um terreno bem diferente dos cenários usuais de suas obras. Conhecida por suas grandes esculturas de aura pop, ela investigava a locação ideal para um futuro projeto numa instituição que aos poucos ganha projeção no Brasil e no exterior: a Usina de Arte. Localizada na Zona da Mata de Pernambuco, ela ocupa uma área verde de 40 hectares em meio às ruínas da antiga Usina de Santa Terezinha — produtora de açúcar que chegou a ser a maior do país nos anos 1950, mas que na década de 1990 decaiu e foi desativada. Por iniciativa de seu herdeiro, o empresário Ricardo Pessôa de Queiroz, 62 anos, juntamente com a esposa, Bruna, 41, o bucólico espaço se transformou nos últimos oito anos em misto de jardim botânico com espécies raras e palco de experimentações artísticas arrojadas — e desconcertantes.
Ao unir paisagismo luxuriante e a chamada landscape art — caracterizada por instalações e esculturas que dialogam com o cenário natural —, a Usina de Arte remete de imediato ao projeto que se tornou referência brasileira (e mundial) nessa categoria, o Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG). A Usina é, sob mais de um aspecto, um similar nordestino e de menor porte que seu precursor em Minas — e seus mentores não negam a inspiração nele. “Depois de uma visita a Inhotim, achamos que faria sentido criar um parque que gerasse um fluxo de turismo e interesse na região”, conta Pessôa de Queiroz. O empurrão final foi a contratação do badalado designer de móveis naturais Hugo França para executar suas criações lá. “Convidamos o Hugo para trabalhar aqui. Ele veio em 2013, 2014 e, em 2015, sugeriu que convidássemos outros artistas. Foi aí que começamos a nos aprofundar na ideia”, diz Bruna.
Quase uma década depois, o jardim botânico da Usina de Arte, principal frente do projeto, conta com um extenso paisagismo e mais de 45 obras de artistas contemporâneos, que podem ser visitadas de maneira gratuita. A maioria foi feita especialmente para o local, seguindo a lógica de residências, em que artistas são convidados a passar um período em contato com a região e a comunidade de Santa Terezinha, com 6 000 habitantes. “Tudo é interligado e pensado para o lugar”, atesta Marc Pottier, que assumiu a curadoria em 2022.
Em outra semelhança curiosa com Inhotim, a Usina também é fruto da obsessão de seus mecenas em criar um legado monumental — ideia que olhares míopes podem achar puro capricho de gente endinheirada, mas que, na verdade, denota um espírito público louvável, ao proporcionar que a população local tenha acesso à cultura e lucre também com o turismo. Com um projeto que alia a arte a ações educacionais, como uma biblioteca e uma escola de música, a Usina tem ganhado visibilidade nos últimos anos. Além do casal, que vem de famílias tradicionalíssimas de Pernambuco, há parcerias com entidades públicas e privadas para fomentar o projeto. O chamariz principal é o Festival Arte na Usina, que acontece anualmente em novembro e já reuniu nomes como Alceu Valença, Arnaldo Antunes e Chico César. “O que funciona é o boca a boca. Nossa visitação vem crescendo ano a ano”, festeja Bruna.
O sucesso vem acompanhado de algumas polêmicas. Logo de início, uma obra deu visibilidade internacional ao lugar — mas também instilou a fúria conservadora. Fincada pela artista pernambucana Juliana Notari em um dos pontos altos do terreno, a escultura Diva emula um órgão sexual feminino gigante e vermelho. Entusiasta da arte contemporânea, Bruna minimiza a controvérsia: “Enquanto a obra chocou o mundo, nossa comunidade, que é fortemente católica e evangélica, ficou superbem”.
Parte do que move o casal de mecenas é, claro, o prazer de conviver e se relacionar com os artistas. Antes da visita da portuguesa Joana Vasconcelos, a bola da vez foi a performática Marina Abramovic´ , que inaugurou ali a escultura Generator: um muro monumental de 25 metros de comprimento que instiga as pessoas a entrar em simbiose com a natureza através de cristais. Papo telúrico à parte, a obra é belíssima — e confirma a força desse ousado museu a céu aberto.
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915