Com a II guerra perdida e as tropas soviéticas se aproximando de seu bunker em Berlim, Adolf Hitler teve uma iluminação: e se fugisse dali para curtir o resto da vida numa boa ao lado da namorada, Eva Braun? Corria o fim de abril de 1945, ele tinha acabado de fazer 56 anos e o plano para a aposentadoria gloriosa era de uma simplicidade atroz: bastava deixar sósias no lugar de ambos, sair da Alemanha, àquela altura destruída e ocupada pelos Aliados, pegar carona num submarino e cruzar o Atlântico em segredo até a Argentina, onde o primeiro-casal nazi seria recebido com honras pelo caudilho Juan Perón. O ditador alemão poderia então morar numa hacienda aos pés da Cordilheira dos Andes. Viveria por lá na santa paz até passar dos 90 anos de idade.
A história narrada acima desperta compreensível curiosidade — mas, felizmente, claro que é uma mentira deslavada. Nos tempos do vale-tudo das redes sociais, narrativas tão sedutoras e sem pé na realidade engrossam a lista dos “fatos alternativos” — e o líder da Alemanha nazista emerge como campeão imbatível do fenômeno, demonstra o historiador inglês Richard J. Evans no livro Conspirações sobre Hitler, que acaba de sair no país pela editora Planeta. Parte de um projeto acadêmico que denuncia efeitos nocivos das chamadas teorias conspiratórias para a democracia, o estudo de Evans não apenas disseca as principais suposições fantasiosas em torno do infame líder totalitário. A partir do caso de Hitler, o livro expõe como o conspiracionismo — circulação persistente de narrativas baseadas em mentiras e na manipulação grotesca dos fatos — se tornou elemento-chave da vida contemporânea e até uma ameaça real. “Nunca houve um período na história em que as teorias da conspiração fossem mais fortes ou generalizadas do que hoje”, disse o autor a VEJA. “Vivemos em uma era de fake news.”
O pendor humano para acreditar em sandices extravagantes, do terraplanismo ao mito de que Elvis Presley não morreu, vem de tempos imemoriais. Como lembra o historiador, é da natureza das pessoas se deixar seduzir por teorias conspiratórias, porque elas acenam com explicações simples (ainda que ilusórias) sobre questões complexas, e são um conforto para aqueles que, no íntimo, não conseguem aceitar que grandes eventos da história possam ter sido provocados por pequenos acasos. Numa típica construção conspirativa, há sempre uma força oculta — o governo, os maçons, a sociedade secreta dos Illuminati — por trás de tudo. As teorias conspiratórias ganharam seu formato moderno no fim do século XVIII, mas mostraram todo seu potencial destrutivo com a ascensão de Hitler.
O führer, pessoalmente, não era um sujeito dado a teorias conspiratórias — nesse quesito, o paranoico rival soviético Stalin era bem pior. Mas suas ideias terríveis vicejaram graças ao efeito delas. O nazismo se aproveitou do ódio em relação aos judeus insuflado na Europa por aquele que é talvez o documento fake mais famoso da história, os Protocolos dos Sábios do Sião. Não se sabe a origem do texto, que seria a minuta de um congresso sionista realizado na Basileia no fim do século XIX, e no qual fictícios líderes judeus exporiam seu plano de dominação do mundo. Hitler citou pouco o documento em público, mas é inegável que sua disseminação ajudou a promover a histeria que levou ao Holocausto de 6 milhões de judeus.
Uma característica da crença em teorias conspiratórias é bem exemplificada pelos Protocolos. Antes mesmo de Hitler chegar ao poder, já estava mais que comprovado que o manuscrito era uma falsificação tosca. Mas veracidade, como dizia o chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, era o de menos aqui: para quem queria enxergar nos judeus uma ameaça, sua existência, por si só, já exprimiria uma inominável “verdade”. O documento foi um trunfo para os nazistas. Mas Evans prova que teorias conspiratórias, na verdade, não têm “lado” ideológico. O célebre incêndio do Reichstag, o Parlamento alemão, em 1933, foi usado por Hitler para denunciar falsamente um levante comunista e suspender os direitos civis. Por décadas, vozes da esquerda especularam que o atentado fora arquitetado pelo ditador. Na verdade, foi obra de um anarquista solitário.
As fantasias sobre a morte de Hitler criam surpreendentes conexões entre o imaginário nazista e as teorias conspiratórias de hoje. O modo como sua vida chegou ao fim é incontestável: ele se suicidou no bunker, ao lado de Eva Braun, e depois subordinados cremaram os corpos. Mas isso não freou delírios conspirativos até hoje muito explorados pela extrema direita, incluindo os apoiadores mais insanos do ex-presidente americano Donald Trump, como forma de dar ao líder nazista uma aura de super-homem invencível. Para além do exílio argentino, relatos dão conta de que ele teria ido viver entre bandidos na Albânia ou que foi flagrado vestido de mulher na Irlanda. As pirações incluem até a hipótese “provável”, alardeada por uma série do History Channel, de que teria ido morar numa base alemã secreta no subterrâneo da Antártica, de onde continuaria vigiando o mundo com a ajuda de discos voadores — claro, os ETs estão sempre à espreita.
Tudo isso pode parecer hilário, mas não se deve esquecer do essencial: teorias conspiratórias vieram para confundir. E, como tal, precisam ser combatidas. “Temos de redobrar nossos esforços para expor suas mentiras, distorções e manipulações”, diz Evans. Ninguém há de duvidar disso.
Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788
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