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Um amor verdadeiro

Em 1973, 'Papillon' causou choque. Sem chance de provocar o mesmo efeito, a refilmagem se dedica a traçar o percurso da amizade masculina

Por Isabela Boscov Atualizado em 27 set 2018, 23h44 - Publicado em 27 set 2018, 23h10

Henri Charrière, conhecido como Papillon, ou Borboleta, por causa da tatuagem que levava no peito, não era nenhum santo, mas consta que teve de comer uma quantidade desproporcional do pão que o diabo amassou: preso em 1931, em Paris, sob uma acusação forjada de assassinato, Charrière passaria os onze anos seguintes num dos mais horripilantes regimes carcerários de que se tem notícia — o das colônias penais da Guiana Francesa. Imundície, comida repugnante, castigos medievais e execuções sumárias eram a rotina do inferno tropical do presídio de St. Laurent. Na primeira tentativa de fuga, o preso ia por dois anos para a solitária. Na segunda, cinco anos; se não morresse, enlouqueceria. Charrière vivia tentando dar no pé, e alegava ter sobrevivido a duas estiradas na solitária, mais uma internação subsequente na Ilha do Diabo. Nesse tempo, teria firmado uma amizade profunda com o falsário Louis Dega, um tipo frágil porém inteligente. No fim, Charrière de fato conseguiu fugir. Obteve perdão presidencial e, em 1970, publicou o best-seller Papillon, que em 1973 foi transformado em filme, com Steve McQueen no papel-título e Dustin Hoffman como Dega. Foi um sucesso e um fenômeno: a brutalidade das prisões andava no imaginário popular desde o sangrento levante do presídio americano de Attica, em 1971, e o filme vinha a quente, logo após a publicação do livro — certas cenas, como aquela em que McQueen põe na boca um inseto rastejante, eram tópico inescapável. Ajudava muito, também, que Papillon viesse com a assinatura de dois mestres em jogar com as emoções da plateia, o roteirista Dalton Trumbo (de Spartacus) e o diretor Franklin J. Schaffner (de O Planeta dos Macacos).

Hoje, sabe-se que muito da narrativa de Charrière, morto no ano do lançamento do filme, é apropriação das histórias de outros presos, quando não invenção pura e simples. Ele dizia que seu livro continha 75% de verdade; investigações posteriores sugerem uma porcentagem bem menor. De acordo com os registros franceses, por exemplo, ele nunca foi exilado na Ilha do Diabo. Ignorar essas descobertas e tomar tudo como registro autobiográfico fiel, como faz a nova versão de Papillon (Estados Unidos/Espanha/República Checa, 2017), já em cartaz no país, é uma manobra boba, que uma linha de texto no final resolveria: ainda que se discuta a lisura de Charrière, não se disputa a veracidade geral do horror que ele relata. Mais ao ponto, é uma pena refilmar o excelente roteiro de Trumbo sem lhe acrescentar algo de novo que justifique repisar um filme tão icônico.

O que há de inusitado — e bom — nesta refeitura é que, pelo menos, ela altera o foco. Sem chance de provocar o mesmo choque que o Papillon original, o diretor dinamarquês Michael Noer se concentra no relacionamento de Charrière (Charlie Hunnam) com Dega (Rami Malek), de seu início oportunista ao aprofundamento em uma amizade tão leal e capaz de espera e de sacrifício que é mais do que isso — é um amor verdadeiro, sem viés sexual, mas nem por isso menos intenso. No final do Papillon de Schaffner, tinha-se dois homens alquebrados despedindo-­se com um abraço que era um reconhecimento tardio de quanto se haviam ajudado a resistir. Agora, a cena é a mesma, mas o sentimento é outro: até na Ilha do Diabo um ho­mem pode deixar para trás algo que lamenta perder.

Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2018, edição nº 2602

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