Finíssima expressão de arte, leveza e habilidade manual, a renda entrou no cotidiano dos europeus, e dele para o mundo, pela porta da sofisticação e do luxo. Confeccionada inicialmente por freiras para arrematar as vestimentas dos clérigos com bordas elaboradas em fios de linho entremeados de ouro e prata, a trama de pontos requintados alternados com espaços vazios conquistou a aristocracia, tornou-se parte obrigatória das roupas e acessórios de homens e mulheres nas famílias ricas e, entre os séculos XVI e XVIII, um importante artigo de exportação de Itália, França e Bélgica, principalmente. Neste último país, a produção explodiu quando o rei Carlos V, do Sacro Império Romano-Germânico, ordenou que todos os conventos e escolas de meninas passassem a ensinar a arte de fazer renda.
Muitas cidades se especializaram em desenhos e pontos específicos e tiveram seus nomes atrelados a padrões que se tornariam famosos, como a renda de Bruxelas e a mechlin, originária de Mechelen. Já em Antuérpia, vibrante entreposto comercial sustentado pelo movimento de navios em seu porto, as rendeiras se dedicaram a uma produção mais eclética e menos reconhecida, embora intensa — a certa altura do século XVII, mais de um quinto da população trabalhava no ramo e a cidade dominava o mercado exportador. Para reparar a injustiça histórica em relação ao papel das rendeiras locais, o Museu de Moda (MoMu) organizou a exposição P.LACE.S — Um Olhar Através da Renda da Antuérpia, com os destaques de seu vasto acervo de peças antigas. “A Antuérpia nunca teve o lugar merecido na história da renda”, disse Wim Mertens, curador da exposição, a VEJA.
A indústria rendeira nasceu — ou, pelo menos, se organizou e ganhou fama — em Veneza e de lá se espalhou pela Europa, com uma característica inusitada para a sociedade da época: era uma atividade exclusiva de mulheres, que ganhavam dinheiro com uma habilidade requisitada por nobres e plebeus ricos. Conta-se que, no Reino Unido, a rainha Elizabeth I, sempre retratada com rufos — a gola alta, engomada e plissada — de renda, não permitia que ninguém em sua corte usasse o mesmo padrão. Seu sucessor, o rei James I, apropriou-se do adorno e extrapolou — os seus empregavam até 23 metros de renda. A atividade rendeira atingiu seu apogeu na França, onde até hoje são produzidas as variedades mais caras e cobiçadas. “Para ter uma ideia, 1 centímetro quadrado da renda francesa Alençon demora até sete horas para ficar pronto”, diz Vera Felippi, doutora em design e pesquisadora de rendas.
As rendas produzidas em Antuérpia eram feitas com bilro, um pequeno instrumento de madeira ou metal capaz de trançar vários fios e movimentado, em geral, sobre uma almofada — cenas de mulheres nessa atividade são tema de diversas pinturas da época. Outra variedade de renda é produzida com agulha sobre um único fio de linha. Com o tempo, os desenhos geométricos simples foram dando lugar a figuras e até cenas perfeitas e delicadas, executadas ponto a ponto com extrema habilidade, aplicadas em vestidos, casacos, gravatas, luvas, almofadas, xales e mantas. Do complexo trançado com bilros saem as nobres rendas francesas chantilly, leve e romântica, e guipir (adaptação de Guipure, onde ela nasceu), mais encorpada — ambas aplicadas hoje em dia em vestidos de noivas dispostas a pagar um preço salgadíssimo, que pode chegar a 200 euros (1 300 reais) o metro. “É um artesanato muito bonito e delicado, e combina com a proposta de graça, frescor e beleza dos vestidos de noiva”, explica a consultora de moda Glória Khalil.
O reinado da renda artesanal chegou ao fim quando, em 1809, o britânico John Heathcoat inventou uma máquina capaz de produzir uma trama em rede que não se desfazia inteira ao ser cortada. O produto industrial se sobrepôs aos fios manipulados pelas rendeiras tradicionais — que, no entanto, sobrevivem em nichos valorizados pela excelência de sua produção. No Brasil, a renda de bilro feita sobretudo no Nordeste é exportada para vários países. Na França, a alta-costura segue fiel aos enfeites rendados — presentes, entre outras, na coleção que a Louis Vuitton apresentou na Passage Richelieu, no Louvre, na recém-encerrada semana de moda de Paris. Em Antuérpia, o trabalho secular de trançar fios e criar beleza virou obra de arte em museu, comprovando mais uma vez que, no universo das maravilhas em forma de tecido, não há como não se render à renda.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760