O anúncio, em abril, de que fora descoberto um manuscrito desconhecido de Anthony Burgess (1917-1993) e de que esse inédito estava relacionado ao romance mais conhecido do escritor inglês, Laranja Mecânica, de 1962, excitou os fãs, que imaginaram uma continuação da história de violência e crimes do líder de gangue Alex, anti-herói do livro. Mas The Clockwork Condition (em tradução aproximada, A Condição Mecânica) é na verdade um ensaio. Foi descoberto pelo estudioso Andrew Biswell, diretor da Fundação Internacional Anthony Burgess, no meio de papéis do escritor que estavam sendo catalogados em uma casa onde ele morou, em Roma. “É uma reflexão não ficcional acerca dos temas atiçados pelo romance original”, define Biswell. Burgess não concluiu esse livro.
Ensaísta, crítico, compositor diletante e ficcionista, Burgess foi autor de vários outros romances notáveis — Nada como o Sol, ficção sobre a vida de Shakespeare, é uma pérola —, mas nenhum que tenha alcançado a repercussão de Laranja Mecânica, uma distopia sobre uma Inglaterra dominada por gangues juvenis que praticam a “ultraviolência” (termo que o livro popularizou). A fama da obra está muito associada à adaptação para o cinema, dirigida por Stanley Kubrick em 1971. Burgess era reticente em relação ao filme: achava que seu visual extravagante era a única coisa que o espectador lembrava ao sair do cinema — a reflexão sobre moral, livre-arbítrio e violência proposta no livro ficaria em segundo plano. Censurado no Brasil, o filme chegou a inspirar crimes na Inglaterra dos anos 70, inclusive o estupro de uma jovem de 17 anos por um grupo de criminosos que cantavam Singin’ in the Rain, como Alex — interpretado por Malcolm McDowell — fazia no filme. Biswell não adianta muito o conteúdo do ensaio que descobriu, mas supõe-se que Burgess tenha feito considerações sobre o filme e suas repercussões. Parte das ideias do manuscrito abandonado, afinal, acabou sendo aproveitada em um livro de ficção publicado em 1974, The Clockwork Testament (O Testamento Mecânico), sobre o último dia de um escritor (provável alter ego do próprio Burgess) que se torna famoso graças a um filme baseado em sua obra. “Esse romance traz os pensamentos de Burgess sobre violência e a indústria cinematográfica”, diz Biswell.
Aldous Huxley (1894-1963), outro autor inglês famoso por um romance distópico, Admirável Mundo Novo, de 1932, também se preocupou em deixar suas considerações sobre o livro — com a diferença de que Regresso ao Admirável Mundo Novo foi completado e publicado pelo escritor. Espera-se que o inédito de Burgess, embora inacabado, também chegue aos leitores. Biswell afirma que a publicação exigirá o trabalho não apenas de um bom editor, mas também de um ilustrador: notas deixadas por Burgess diziam que o livro deveria ser metade texto, metade imagens.
Publicado em VEJA de 22 de maio de 2019, edição nº 2635
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