O método de trabalho do diretor japonês Hayao Miyazaki, de 79 anos, é de causar calafrios em produtores de animações ocidentais — e espanto na geração acomodada com as facilidades da tecnologia. Os filmes do mestre do aclamado Studio Ghibli são guiados por uma ideia, e não um roteiro. Enquanto ele risca o storyboard, equipes de até 100 pessoas o acompanham paralelamente, montando as cenas sem saber o final. Tudo é desenhado a mão, sob a supervisão do obstinado e metódico diretor: ele trabalha dez horas por dia, seis dias por semana, e conduz seu time com rédeas curtas. Até a animação ficar pronta, lá se vão cinco anos. “Não sou eu quem faz o filme. Ele se faz sozinho, não tenho escolha a não ser segui-lo”, diz Miyazaki, refém da própria arte.
E que arte. As belíssimas animações conferiram status de lenda a Miyazaki e a seu sócio, mentor e também rival Isao Takahata, morto em 2018, aos 82 anos. Tanto perfeccionismo fez o Ghibli passar de grife local a fenômeno cult mundial, somando 1,6 bilhão de dólares em bilheteria. Número notável para um pequeno estúdio de produção artesanal em Tóquio que até hoje fez pouco mais de duas dezenas de filmes. Mas o triunfo não eliminava uma deficiência. As primeiras produções da companhia japonesa mal passaram pelos cinemas ocidentais — e quem perdeu a chance de ver as mais recentes na tela grande caiu no limbo das poucas cópias em DVD disputadas a tapa ou da pirataria. Por isso o compreensível frenesi quando a Netflix anunciou, em janeiro, a chegada de 21 das 22 produções do estúdio a seu catálogo.
O desembarque se dá em três levas. A primeira, em fevereiro, trouxe sete títulos, desde o pop e encantador Meu Amigo Totoro (1988) até a raridade Memórias de Ontem (1991). Em março e abril, outros catorze longas serão lançados de forma parcelada, incluindo-se aí o vencedor do Oscar A Viagem de Chihiro (2001), uma piração nonsense sobre uma garota obrigada a trabalhar em uma casa de banho para espíritos, e o delicado O Conto da Princesa Kaguya (2013) — o último e primoroso trabalho de Takahata, que levou oito anos para terminá-lo, por seu exímio traço em homenagem às tradicionais pinturas e gravuras japonesas. Com a capilaridade da Netflix, presente em 190 países, as produções do Ghibli vão ganhar novas dublagens e legendas em 28 idiomas: no Brasil, cinco filmes serão dublados em português.
O lançamento no streaming sela a retomada do Ghibli, que fechou as portas pouco depois de Miyazaki anunciar sua aposentadoria, em 2013. Foi uma das três vezes em que ele tentou pendurar as chuteiras, sem sucesso: no ano passado, o cineasta não resistiu e voltou à ativa com duas novas animações — uma delas deverá estrear em 2021. Enquanto isso, um parque temático com cenários dos filmes está em construção em Nagakute, a 350 quilômetros de Tóquio. Completa o pacote de novidades a produção do live-action de Sussurros do Coração (1995), título pouco conhecido, mas idolatrado pelos fãs do acervo.
Chamar o Ghibli de Disney japonesa é uma tentação inevitável, mas rechaçada por Miyazaki. Para além das diferenças visuais e nos métodos criativos, o Ghibli expressa a temática da infância de forma essencialmente oposta aos desenhos da Disney. Se os americanos preferem finais felizes e princesas mais delicadas, o Ghibli toca em temas como luto, guerra e solidão. Suas princesas são empoderadas. O conceito de herói e vilão é subvertido: ninguém é totalmente mau ou bom. “O estúdio segue um conceito da cultura japonesa chamado mono no aware, que diz respeito à melancolia da vida. Eles aceitam que tudo é efêmero, a dor e a felicidade, e ambas devem ser vividas”, diz a VEJA a americana Susan Napier, biógrafa de Miyazaki. Criado sob a devastação deixada pela II Guerra, o animador moldou uma visão de mundo humanista.
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Apesar da distância existencial que separa o Ghibli da Disney, os dois se retroalimentam. Impulsionados pelo culto aos sucessos do gigante americano, os estúdios japoneses aqueceram a produção de seus tradicionais animes para TV e cinema entre os anos 1970 e 1980, criando o ambiente ideal para o nascimento do Ghibli, em 1985. Seu sucesso acelerado logo chamou a atenção dos colegas ocidentais. John Lasseter, ex-diretor de criação da Pixar e da Disney, instruía seus animadores a buscar inspiração nos colegas japoneses: foi após uma visita a Miyazaki, aliás, que ele teve a ideia de criar Toy Story (1995).
Em 1996, a empresa de Mickey Mouse, voraz engolidora de concorrentes, adquiriu os direitos de distribuição da produtora oriental, em um acordo de 30 milhões de dólares. A parceria teve altos e baixos. Os filmes do Ghibli nem sempre ganhavam a devida exposição, o que passava a impressão de que os americanos discretamente os colocavam para escanteio. Mas a gota d’água foi a decisão da Disney de mudar falas nas dublagens para tornar mais leve o conteúdo das nada amenas animações japonesas, provocando a ira de Miyazaki. Em 2011, uma nova distribuidora entrou no negócio, e a Disney aos poucos foi se desligando. Agora, com sua chegada ao streaming, as preciosidades do Studio Ghibli enfim estarão ao alcance de todos.
Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674
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