Senhor do crime
O historiador Boris Fausto reconstitui três assassinatos célebres para empreender uma investigação dos costumes da São Paulo do início do século XX
Na abafada tarde de Carnaval de 24 de fevereiro de 1909, um bacharel em direito é abordado por outro rapaz bem-vestido no centro de São Paulo. Eliziário Bonilha se apresenta como empresário carioca interessado em tratar de negócios. Arthur Malheiros, o jovem advogado, topa o convite do estranho para ir a um hotel dentro de uma galeria envidraçada. Quando a porta do quarto 59 se abre, o susto: uma mulher de vestido branco, com revólver em punho, mira a cabeça de Malheiros. O moço reconhece Albertina, professorinha com a qual tivera um affair, e pede perdão por tê-la abandonado grávida, mas leva dois tiros pelas costas. Não satisfeita, a assassina corta a garganta dele com uma faca.
Embora exiba todos os elementos de um folhetim, a história narrada em O Crime da Galeria de Cristal é caso verídico da crônica policial da São Paulo d’antanho. O novo livro de Boris Fausto, de 88 anos, historiador e cabeça consagrada das ciências humanas no país, é uma pequena joia do ensaísmo: na sua narrativa sedutora, livre de cacoetes acadêmicos, o caso serve de trilha para garimpar muito mais. Fausto retrata o instante de virada em que São Paulo, fertilizada pela chegada de imigrantes europeus, deixa de ser uma cidade média para se transformar em metrópole, ainda que conserve seu provincianismo. Capta o advento da imprensa profissional e de um derivado dela, o sensacionalismo.
Em contraste com esse fundo amplo, há iluminações mais sutis: é o momento em que o noticiário criminal se desprega do ordinário para se converter em espetáculo que mobiliza o país. De certo fla-flu entre visões de mundo ao debate sobre o papel da mulher, há correspondências notáveis com temas da agenda atual. Em O Crime do Restaurante Chinês, de 2009, Fausto já explorara as possibilidades do que os franceses chamam de faits divers — os “fatos diversos”, pequenos acontecimentos que ganham interesse ao se revestir de excepcionalidade, como os assassinatos rumorosos e grandes desastres. As “epopeias do insignificante” não devem ser desprezadas: por meio de um crime cuja narrativa se encerra em si, pode-se decifrar o comportamento de toda uma época — e espiar detalhes curiosos da vida privada. A tendência não é nova, nem exclusiva do país: obras como As Suspeitas do Sr. Whicher (2009), na qual a jornalista inglesa Kate Summerscale revê os passos de um detetive pioneiro da Scotland Yard no século XIX, comprovam o potencial do gênero.
Com seu novo livro, Fausto confirma-se como o senhor do segmento no país. O crime da galeria de cristal é seu principal objeto, mas não o único: o historiador aplica o mesmo método ao dissecar os dois célebres “crimes da mala” que abalaram São Paulo em um intervalo de apenas vinte anos, em 1908 e 1928. “O papel relevante da mulher é o ponto em comum que me atraiu nos três casos”, diz Fausto. No crime da galeria de cristal, o apelo feminino é evidente. Albertina, apesar de assassina confessa, exibia traços que atenuaram sua barra. Tinha uma profissão de moça esforçada, o magistério. Casada com o comparsa Bonilha, compareceu diante do júri grávida do marido e, depois, com o bebê no colo.
Para a opinião mais conservadora, Albertina não fazia jus ao recato que se esperava de uma mulher correta. Esses defensores do recato, por sinal, a tratavam nos termos mais chulos. Já a ala liberal a elegeu como heroína: era uma moça valorosa que dera o devido troco a um abusador canalha. Daí a enxergar na figura de Albertina uma ponta do espírito do tempo do Me Too é avançar o sinal: como ressalta Fausto, não é possível aplicar concepções de hoje à sociedade brasileira do início do século XX. Mas o fato é que Albertina se beneficiou da condição de mulher: após cinco julgamentos marcados por shows de promotores e advogados, plateias concorridas e grande interesse público, ela foi absolvida. Uma curiosidade: ao pesquisar sobre o caso, Fausto descobriu que os autos oficiais haviam sumido durante mudança da sede do Arquivo Judiciário paulista. “Sem o processo, o que eu podia fazer? Fui examinar os jornais da época e descobri um tesouro: eles faziam transcrições minuciosas de todos os debates dos tribunais”, diz ele.
Nos dois crimes da mala, as mulheres não ocuparam o centro do palco: foram coadjuvantes de luxo. O assassino do primeiro caso exibia um traço típico dos criminosos (e terroristas) de hoje: o exibicionismo “midiático”. O imigrante sírio-libanês Michel Trad era um almofadinha com pinta de galã. Não se sabe se só por desavença nos negócios ou por um provável envolvimento com a mulher da vítima, ele matou seu sócio — da mesma colônia sírio-libanesa —, enfiou o corpo dele numa mala e embarcou com ela em um navio com destino ao Rio. A coisa fedeu: o mau cheiro fez com que a tripulação revistasse a mala, e Trad foi descoberto. Após assumir a autoria do crime, livrando a mulher da vítima da acusação de cúmplice, ele virou celebridade bajulada por autoridades e escreveu best-sellers. A aura de mito se cristalizou com seu sumiço, depois de passar anos na prisão e ser expulso do Brasil. O segundo crime da mala tem um roteiro muito parecido, mas não deve ser visto como uma imitação do caso anterior: ao matar a mulher, Maria Féa, e embarcar com pedaços dela num navio, o italiano Giuseppe Pistone possivelmente copiou estratégias usadas por criminosos de seu país. Como se vê, o crime já era globalizado.
Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627
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