Ninguém espera um filme para cima quando se trata do cinema russo – pelo menos do cinema russo que passa em festivais. Nelyubov (em inglês, Loveless, “sem amor”), de Andrey Zvyagintsev, não decepcionou nesse quesito. Ainda bem que também não decepcionou na qualidade, inaugurando a competição do Festival de Cannes com força, depois de uma abertura hors concours para lá de morna com o francês Les Fantômes D’Ismaël, de Arnaud Desplechin. O filme até arrancou uma boa dose de aplausos na normalmente comedida sessão de imprensa da noite.
Nelyubov é um drama disfarçado de thriller policial. Boris (Alexei Rozin) e Zhenya (Maryana Spivak) estão no meio de um processo de divórcio, embora ainda vivam no mesmo apartamento, que tentam vender. Nenhum dos dois liga para o filho de 12 anos, Alyosha (Matvey Novikov) – uma das cenas mais impactantes é quando uma porta se fecha, em meio a uma briga particularmente virulenta dos pais, para revelar o rosto contorcido e banhado em lágrimas do tímido garoto. Um dia, Alyosha desaparece, quando Zhenya está ocupada com seu amante, Anton (Andris Keishs), rico e mais velho, e Boris com sua amante grávida, Masha (Marina Vasilyeva). Fosse um filme de Hollywood, Boris e Zhenya se uniriam na busca pelo menino. Mas Nelyubov, é bom lembrar, é russo. Aos poucos, os motivos dos ressentimentos entre os dois vão ficando mais claros.
O drama familiar, porém, é no fundo outro disfarce para o retrato de um país. Zvyagintsev, afinal, é o diretor de Leviatã, que mostrava a corrupção dominante na Rússia por meio de uma história pequena, numa vila à beira do mar. Aqui, a disfunção da sociedade vai tomando o lugar da familiar quando um policial explica muito pragmaticamente que a melhor solução é recorrer a um grupo de voluntários que faz buscas de crianças arteiras – ele tem certeza de que Alyosha vai voltar e não quer “gastar” recursos com isso.
Numa das sequências mais impressionantes, a procura vai a um prédio abandonado, aparentemente um hotel, agora caindo aos pedaços, um retrato de um país que esqueceu seu passado. Em outra, num restaurante onde Zhenya janta com o namorado rico, a cultura da imagem representada pelas selfies e a degradação moral ficam evidentes. Nelyubov fala da Rússia – numa cena, Zhenya chega a usar um agasalho com o nome do país estampado –, mas, em dados momentos, poderia mesmo estar falando do mundo de forma geral.