Organizada por Arlete Cavaliere, professora de literatura russa da Universidade de São Paulo, a Antologia do Humor Russo (1832-2014) apresenta uma mescla bem russófila de riso, crítica social e dubiedade em relação às possibilidades da história e da natureza humanas — combinação que, no Brasil, encontra um pathos correlato na ironia fina (e pessimista) de Machado de Assis.
Se, como certa vez sentenciou o escritor inglês George Orwell, “cada anedota é uma pequena revolução”, os textos que compõem a antologia, dos clássicos Nikolai Gógol, Fiódor Dostoiévski, Liev Tolstói e Anton Tchékhov aos mais contemporâneos Mikhail Bulgákov, Vladímir Nabókov, Sergei Dovlátov e Fazil Iskander, oferecem um panorama do riso, da paródia e da mordacidade críticos que nos leva da autocracia czarista à ditadura soviética, sempre com a censura a rondar os autores como um espectro. Não à toa, no texto de apresentação à antologia, intitulado “O ‘mundo do riso’ russo: comicidade e riso na literatura russa”, Arlete Cavaliere afirma: “Os escritores russos fizeram do humor e do riso procedimentos essenciais de sua criação e um modo de resistência perante governantes autocratas, travando luta ferrenha contra a censura, da qual não escapariam incólumes: muitos foram enviados ao exílio, outros obrigados a emigrar, e alguns, tidos como loucos, viveram a clausura de clínicas psiquiátricas, e quantos não desapareceriam nas prisões soviéticas”.
Torna-se bem compreensível, então, uma afirmação de Dostoiévski sobre a obra de Gógol. O autor de Crime e Castigo observa que, sob o “riso de superfície” gogoliano, havia muitas “lágrimas subterrâneas”. É como se, para comporem o humor russo, os autores tivessem de vestir as velhas máscaras teatrais gregas — uma que ri e a outra que chora.
É assim que, no conto “Uma turma animada”, de autoria dos escritores soviéticos Natália Dobrokhotova-Malkova e Vladímir Piatnitski, ficamos sabendo que “Liev Tolstói gostava muito de crianças. Certa vez, enquanto caminhava pelo bulevar Tvierskoi (em Moscou), deu de cara com Aleksandr Púchkin. ‘É claro que este não é mais uma criança, e sim um adolescente’, pensou Liev Tolstói, ‘mas mesmo assim vou agarrá-lo e fazer-lhe um cafuné’. E correu para agarrar Púchkin. Sem saber das intenções de Tolstói, Púchkin deu no pé. Ao passarem correndo por um policial, este guardião da ordem ficou indignado com a indecente rapidez de tal corrida em lugar tão público e tratou de correr atrás deles para detê-los. A imprensa ocidental depois escreveria que na Rússia os literatos são perseguidos pelas autoridades”.
Que dizer, então, de um “Sonho com Deus e o diabo”, conto de autoria do soviético Fazil Iskander, em meio ao qual Deus e o diabo analisam os (des)caminhos da história humana, ruminam sobre a alma do líder bolchevique Vladimir Lênin e, ao fim, dão de ombros diante dos desatinos da Rússia e seu povo? Eis o diálogo:
Diabo: Onde está agora a alma de Lênin?
Deus: No paraíso.
Diabo: Como no paraíso?
Deus: Os lutadores mais furiosos eu mando para o paraíso. Lá eles experimentam os suplícios mais infernais, ao ver que é impossível lutar no paraíso.
Diabo: Nesse caso, diga: o que tem a Rússia?
Deus: A Rússia é minha dor. Ela perdeu a vontade de viver.
Diabo: Por quê?
Resposta de Deus com amarga ironia: Porque os russos acham que Lênin pensa neles de seu mausoléu.
Se até mesmo Deus, em face da reversão da utopia socialista em distopia, não consegue passar sem uma amarga dose de ironia (e, quiçá, sem algumas talagadas de vodca), também é possível extrair do humor ácido uma boa pitada de prudência como receita para sobreviver. Assim, quando o diabo interpela Deus sobre qual seria a diferença entre inteligência e sabedoria, o Criador, como um dissidente que precisa escapar das batidas arbitrárias e noturnas dos agentes da KGB, só faz ensinar: “A inteligência penetra. A sabedoria contorna”.
Foi com esse espírito que o escritor (anti)soviético Sergei Dovlátov parece ter composto o conto autobiográfico “O coronel diz que eu amo você”, em meio ao qual o autor nos conta que, na manhã posterior a uma festa em seu apartamento, deparou com uma moça deitada em seu arremedo de sofá. Lena — em algum momento o nome surge — agia como se nada de anormal estivesse acontecendo e, sem dar satisfações ao escritor, passa a frequentar sua casa como se já fosse sua esposa (só que não havia diálogo algum entre os não cônjuges insólitos). Certo dia, sumamente encafifado com a frequência da desconhecida em sua casa, Dovlátov resolve quebrar o gelo. Das duas, uma: ou Lena está apaixonada de modo inusitado ou, sabedora de que Dovlátov detesta o regime soviético, ela seria na verdade uma espiã. Então, eis que pergunta o autor: “Você, por acaso, não seria funcionária da KGB?”.
Publicado em VEJA de 23 de janeiro de 2019, edição nº 2618
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