Projetar o próprio túmulo não é das ideias mais efetivas para se distrair da morte, mas foi o passatempo escolhido por um já idoso Michelangelo (1475-1564) para manter-se ativo. Segundo narra o discípulo e biógrafo Giorgio Vasari, o gênio renascentista começou a moldar uma escultura para adornar sua tumba aos 72 anos, visando assim a ocupar a mente e se manter são. Durante oito anos, debruçou-se noite adentro sobre um bloco de mármore, fazendo emergir dele o corpo de Jesus Cristo crucificado e amparado pela Virgem Maria, por Maria Madalena e pelo fariseu Nicodemos — na face do qual esculpiu seu autorretrato. O plano era doar a peça à igreja de Florença onde queria ser enterrado. Mas a obra nunca chegou a ser concluída. Relata Vasari que Michelangelo — capaz de passar meses nas montanhas de Carrara em busca do mármore perfeito — se irritou com o bloco destinado à escultura e tentou destruí-la em um acesso de fúria. Hoje batizada de Pietà Bandini, a obra sobreviveu — sem nunca alcançar, claro, a notoriedade da Pietà mais famosa, um dos tesouros do Vaticano. Agora, porém, o término da primeira restauração da obra renegada em mais de 470 anos prova que a aversão do mestre era exagerada — ela é soberba. “Não há restaurações documentadas antes desta, a não ser a realizada por volta de 1560 por Tibério Calcagni, sem o qual a obra nunca teria chegado a nós”, conta Paola Rosa, à frente do processo no Museu do Duomo, em Florença.
Com posição de destaque na instituição, no centro da Tribuna di Michelangelo, a Pietà Bandini começou a ser restaurada em 2019 ali mesmo, com todo o processo feito diante dos olhos dos visitantes. Um extenso diagnóstico mostrou que a obra estava coberta por camadas de cera oxidada e gesso, removidas com um trabalho minucioso de limpeza e reconstrução que reavivou as cores originais. “O objetivo era obter uma superfície agradável e uniforme, que passasse a imagem da Pietà esculpida em um único bloco, como provavelmente Michelangelo pensou”, explica a restauradora, que também tem no currículo o reparo do inigualável David. “Tive o privilégio de recuperar outras obras de Michelangelo, e é sempre uma grande emoção aliada a uma enorme responsabilidade”, diz. Mesmo com o processo finalizado, o “laboratório” de restauração seguirá em exposição até março de 2022, dando aos visitantes a chance de desfrutar de tours guiados sobre uma das peças mais menosprezadas de Michelangelo.
Abandonada por seu criador em 1555, a Pietà foi doada ao serviçal Antonio da Casteldurante, que pediu a Tiberio Calcagni, pupilo de Michelangelo, que completasse a figura de Maria Madalena. Foi, então, vendida ao banqueiro Francesco Bandini, de quem herdou o nome, e exposta nos jardins de sua casa até 1649, quando passou a adornar o palácio de um cardeal em Roma. Em 1671, foi comprada por Cosimo III de Medici e retornou a Florença, onde passou quase cinquenta anos escondida na cripta da Basílica de São Lourenço, antes de ser exposta na parte de trás do altar da Catedral de Santa Maria del Fiore. “A Pietà Bandini é menos valorizada do que outras obras de Michelangelo porque por muito tempo esteve quase invisível”, conta Paola. Isso só melhorou a partir de 1933, quando passou a ser mais exposta, ainda que timidamente. Em 1981, foi enfim transferida ao Museu do Duomo, e desde 2015 se impõe com maestria no centro do salão, sobre uma base que evoca o altar fúnebre ao qual seria destinada originalmente.
Com quatro figuras esculpidas em um único bloco de 2,25 metros e 2,7 toneladas, a peça confirma a habilidade de Michelangelo no trato do material, e também traz luz sobre sua relação obsessiva com o mármore. A restauração revelou que o mestre tinha razão: a pedra, de fato, não era da melhor qualidade. Nem sequer veio de Carrara, mas de Seravezza, a cerca de 16 quilômetros dali. Seus veios e rachaduras podem tê-lo levado a desistir do trabalho. Perfeccionista, ele escreveu em um de seus sonetos que “nem o melhor dos artistas tem qualquer concepção que um único bloco de mármore não tenha”, sugerindo que a imagem se revelava a ele através da pedra. Curiosamente, os restauradores não encontraram vestígio de que ele tenha de fato destruído a obra a marteladas. O milagre do renascimento trouxe de volta ao mundo a obra-prima escondida — sem que ela perdesse sua aura de mistério.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760
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