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“Quero hackear os espaços”, diz primeira roteirista trans da TV

A carioca Luh Maza, de 33 anos, pioneira ao dirigir espetáculo no Theatro Municipal de SP, fala sobre a série Sessão de Terapia

Por Luh Maza
Atualizado em 30 dez 2020, 19h00 - Publicado em 30 dez 2020, 18h57

Ainda muito nova, aos 18 anos, sentia que dentro de mim existia algo que precisava ser corrigido. Ao longo do tempo, lutei para dissimular minha natureza, pois sentia que precisava esconder quem verdadeiramente sou. Num país como o Brasil, onde a expectativa de vida de pessoas transgêneras não chega aos 40 anos, tive medo de, ao me revelar em público, perder a credibilidade que construí como roteirista e dramaturga. E pior, ser marginalizada. Cheguei a pensar que, apesar dos prêmios que recebi, poderia ter que recorrer à prostituição, como fazem tantas mulheres trans que não encontram espaço no mercado de trabalho. Esse medo absurdo me fez sofrer em silêncio por 30 anos. Foi só quando rompi com uma série de dogmas familiares e me vi representada em outras mulheres trans que me senti convocada a assumir minha luta e felicidade.

Escrevi minha primeira peça aos oito anos e comecei a estudar teatro aos 12, no Rio de Janeiro. Com o tempo, meu desejo de contar histórias se tornou ainda mais urgente e passei a encenar meus próprios textos. Hoje, vejo que isso foi resultado de uma série de fatores: como a escrita é um reflexo de quem sou e tenho em mim recortes sociais e raciais, vi desde muito cedo que as minhas criações não interessavam os diretores da época. Os preconceitos de classe e de raça me afastaram do palco e fui empurrada para os bastidores. A minha resposta foi buscar o lugar de criação, onde o artista tem mais poder e independência. Com a cultura no Rio padecendo, decidi me mudar para São Paulo, onde, aos poucos, me liberto como pessoa e como artista. Em 2015, enceno minha primeira peça fora do Brasil. “Carne Viva” se tornou um ponto de virada na minha carreira porque a partir do reconhecimento internacional o teatro brasileiro fica ainda mais interessado no que tenho a dizer e a mostrar. No ano seguinte, já com outra produção, traduzida, produzida e dirigida por mim, recebo o prêmio de melhor espetáculo daquele ano.

Há dois anos, recebi o convite para compor a equipe de roteiristas da série Sessão de Terapia, do GNT, e escrever sobre o personagem Nando, um home negro que discute masculinidade e é o oposto da minha existência. Eu acabei ganhando mais projeção ao falar sobre personagens trans, negros e femininos, mas também não quero ser rotulada como uma dramaturga que só fala a respeito da temática LGBT. A verdade é que preciso estar sempre um tempo a frente para não ser usada como cortina de fumaça. Não sou a regra e sim a exceção e isso me traz a obrigação de hackear os espaços que conquistei para apresentar um ponto de vista diferente aos que ainda nos enxergam de forma preconceituosa. Os prêmios me envaidecem, mas o meu reconhecimento não pode servir para ofuscar as outras milhares de pessoas trans e pretas que trabalham e não tem a mesma visibilidade. Eu não quero ser cota, mas lançar luz sobre outras minorias que precisam ocupar os lugares que nunca antes ocuparam.

Meu maior sonho é conseguir, através da arte, naturalizar a minha presença e a de outros corpos como o meu nos espaços. Sair de casa é sempre um desafio porque não me veem como a primeira roteirista trans da TV e sim como uma travesti preta que não deveria estar ali. Há, em mim e em meus semelhantes, uma necessidade ininterrupta de provar meu talento e minha capacidade. Esse constrangimento me acompanha aonde quer que eu vá. Na festa de lançamento da série que ajudei a escrever, mesmo vestida como a mulher que sou, o segurança errou o pronome e tentou me barrar. Na cabeça daquela pessoa era impossível que eu pudesse ser uma das convidadas festa, menos ainda que eu seria uma das criadoras que possibilitou que a tal festa existisse.

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A pessoa pode não ser transfóbica de maneira proposital, mas se ela não se comprometer em reconhecer e me respeitar por quem sou, ela será tão violenta como quem me endereça xingamentos na rua. Mais importante do que meu nome e meu rosto serem conhecidos é o fim do preconceito. O próximo passo é entrar numa sala e não ser a única mulher trans e preta.

Depoimento dado a Jana Sampaio

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