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“Proibir é sempre pior”, diz o autor infanto-juvenil Pedro Bandeira

Aos 82 anos, o criador de best sellers como 'A Droga da Obediência' falou a VEJA sobre o sucesso de seus livros e os dilemas dos pais hoje

Por Diego Braga Norte 12 set 2024, 12h39
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  • O autor e best seller infanto-juvenil Pedro Bandeira
     (divulgação/Divulgação)

    Conhecido por diferentes gerações de leitores e com seus livros adotados oficialmente em programas pedagógicos públicos e particulares, Pedro Bandeira, 82 anos, é uma notoriedade na literatura nacional. Junto de sua contemporânea Ana Maria Machado, 82, e da decana Ruth Rocha, 93, formam, há decadas, a tríade mais influente e premiada da literatura infanto-juvenil, com centenas de obras publicadas no país e traduzidas para diferentes línguas. O autor estudou publicidade antes de se enveredar pelo jornalismo. Lançou seus primeiros títulos infantil em 1983, O Dinossauro Que Fazia Au-au e É Proibido Miar, mas só abandonou a vida de repórter no ano seguinte, após o sucesso de A Droga da Obediência.

    O livro é o primeiro da turma de amigos chamada de “os karas”, que protagoniza outros cinco títulos. A obra já vendeu mais de 3 milhões de cópias e está chegando à centésima edição — um marco para o mercado editorial.  Presente na 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo para participar de mesas sobre literatura infantil, Bandeira está longe de aparentar sua idade. Ele fala rápido e muito, dando pouco tempo para seus interlocutores pensarem e responderem. Também segue com o raciocínio afiado, concatenando diferentes referências e contextos, e com bom-humor.

    O autor de clássicos infantis como A Marca de uma Lágrima (1985), O Fantástico Mistério de Feiurinha (1986), O Mistério da Fábrica de Livros (1994), dentre outros, conversou com VEJA sobre censura, uso de celulares, adaptações de livros, educação infantil e um tema muito caro em sua vida, liberdade. “Ser livre é respeitar a liberdade do outro”, disse ele. Confira a conversa:

    Hoje em dia a leitura e até o hábito de ouvir histórias têm um concorrente poderoso, o celular. Como competir pela atenção das crianças e jovens? Antigamente não tinha celular, mas havia televisão. Mas se uma mãe falasse assim: ‘meu filho, vem cá que eu vou te contar uma história’, ele sairia da televisão. Acontece que os pais se aproveitam da situação e vão fazer outra coisa. Qualquer criança prefere a companhia da mãe ou do pai ao celular. Temos de nos comunicar com as crianças e jovens que dependem de nós. Dê atenção, chame, crie um momento. Não podemos por a culpa nos objetos. São ruins a televisão e o celular?  Eu uso celular e assisto televisão, são ótimos. Agora, se a criança está viciada, não faz outra coisa, aí tem um problema. Se ela ficar o dia inteiro fechada no quarto lendo, tem outro problema. O mundo é vário, tem de ter leitura e celular.

    O senhor tem alguma palavra para pais que querem ensinar o hábito da leitura aos seus filhos? Nós não podemos nos fechar depois de adultos. Muitos adultos se fecham em seus mundos, apartados dos filhos. ‘Ai, eu preciso ganhar mais dinheiro, preciso trabalhar mais’. Uma criança, às vezes, espera o dia inteiro para contar alguma coisa que aconteceu na escola e este momento não existe em casa. Os pais estão exaustos ou com preguiça e dão o celular na mão da criança, resolvem várias situações assim. A culpa é do celular ou dos pais? Nós temos que tentar ajudar a próxima geração a ser melhor. Ser cidadão é isso, ser pai é isso.

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    Recentemente temos visto episódios de censura contra livros infantis e infanto-juvenis. O livro infanto-juvenil Aparelho Sexual e Cia. foi censurado em diversas cidades e acusado de ser parte de um suposto “kit gay”. Há alguns anos, o então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, mandou recolher uma HQ que tinha um cena de um beijo entre garotos. E há ainda outros episódios semelhantes. Como o senhor vê esse movimento? Sinceramente, eu não sei se está recrudescendo ou se sempre existiu. Uma coisa que certamente aumentou foi a divulgação desses episódios de censura. E isso é bom porque antigamente censuravam e muitos nem ficavam sabendo. A pessoa que defende a censura tem liberdade de pensar o que quiser, até besteira. Se ela acha que um livro é ruim para a filha dela, então a criança não vai ter acesso. Mas ela não pode impor a sua vontade às outras 40 crianças da sala de aula em nome da liberdade. Isso é ditadura. Ser livre é respeitar a liberdade do outro.

    O senhor já teve problemas com a censura de suas obras. Poderia falar sobre isso? Tem um livro meu que é um best-seller [Mariana, menina e mulher, de 2016], mas que tem a palavra calcinha e trechos sobre puberdade e menstruação. Deu um rolo danado nas escolas. Eu escrevi a história de uma menina e sua entrada na puberdade. Na história, a colega já se menstruou e ela não. Então, ela compra um absorvente e bota na bolsa para todo mundo ver. Os seios dela não cresceram tanto quanto os da cola, e ela usa enchimento para parecerem maiores. Essas coisas que meninas dessa faixa etária sempre fizeram e fazem até hoje. Muitos pais disseram que o filho e a filha não deveriam ler tal coisa, reclamaram com a professora. Teve pai que fez B.O. na delegacia, houve muitas reclamações nas escolas, pais me xingando, dizendo que eu era um depravado.

    E como o senhor lida com isso?  Eu tenho sempre o mesmo conselho para essas pessoas: ajudem seus filhos e filhas crescerem. Por que não conversar sobre puberdade e adolescência com carinho e honestidade? Eles vão crescer, ser adultos, é dever dos pais e da escola ajudarem neste processo. Se ninguém falar nada, eles vão ouvir informações sobre isso na boca suja da rua. Podem ouvir e aprender muita bobagem e preconceitos. É isso esses pais querem para seus filhos? Houve um casal de pais religiosos que convenceu a professora a adotar outro livro para a filha deles. O resto da classe que não reclamou e foi a saída que a escola encontrou. Sabe o aconteceu? A garota ficou morta de curiosidade e leu o livro proibido. Proibir é sempre pior.

    Paralelo ao movimento de censura, tem outro de reedição de obras antigas sem termos considerados ofensivos. Nos EUA reeditaram o Mark Twain e no Reino Unido, o Roald Dahl. O que o senhor pensa sobre esse processo de reescrever livros infantis? Os irmãos Grimm, quando escreveram os contos, ouviram muitas histórias tradicionais e folclóricas que circulavam na época. Eles escreveram como folcloristas, não como literatura infantil. Os contos originais são muito cabeludos, impublicáveis para crianças. A história original da Branca Neve termina com os anões pegando a bruxa, prendendo-a dentro de uma barrica e jogando-a numa cachoeira para ela se arrebentar nas pedras e morrer. Poxa, vamos contar isso para uma criança? Não precisa. No conto Chapeuzinho Vermelho, o lobo come mesmo a velhinha e dá pedaços de carne humana para a menina comer também. Dá um copo de sangue da avó para Chapeuzinho beber, dizendo que é groselha. E manda a garota tirar a roupa e se deitar na cama com ele! É pesado porque era assim que as contadoras de história na Alemanha contavam. Porém, nós vamos contar exatamente assim? É natural fazer adaptações.

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    Aqui no Brasil, depois que o Monteiro Lobato caiu em domínio público, saíram edições sem os termos racistas. O senhor também fez uma. Poderia contar como foi esse trabalho? Eu adaptei Reinações de Narizinho, do Lobato. Se tirar os trechos em que a Emília xinga a tia Anastácia de “negra beiçuda” ou faz outros comentários racistas, não muda nada, a história permanece lá. Por que a Emília tem de xingar? Emília era uma boneca que passou a falar e já nasce com preconceito racial? É o autor falando ou ela é a alter ego da Narizinho, a pessoa que a criou? Então, Narizinho é racista? Exclui os xingamentos, não acrescentam nada à narrativa, só confundem e não fazem mais parte do nosso tempo. Ficou melhor, mais contemporâneo. O Lobato fez muita coisa muito boa e, assim como os Grimm, tem histórias que eles deixaram que não funcionam mais, foram esquecidas. As que ficaram merecem um tratamento especial, para os leitores atuais. Mas mesmo com as adaptações, eu sou a favor de manter também sempre os livros originais. Não para as crianças os lerem, mas para adultos poderem consultar e estudar como eram as sociedades que os Grimm e o Lobato viviam.

    Seu livro A Droga da Obediência já teve mais de noventa edições e segue sendo muito lido. O senhor vê alguma mudança na recepção do livro da época em que foi lançado, em 1984, e nos dias atuais? Acho que o impacto é o mesmo porque o livro é uma metáfora do autoritarismo. Quando eu era jornalista em plena ditadura, sofri muito com a censura. Eles diziam o que podíamos assistir, ler. Aquilo foi terrível. Eu escrevi esse livro como uma metáfora da ditadura, da burrice que é alguém querer controlar tudo e todos. As crianças que estão chegando na adolescência têm vontade de se libertar da casa, dos pais, querem achar seu próprio caminho. O livro fala sobre isso, sobre a liberdade para ser e existir, mas com responsabilidade. Esse sentimento é igual há 40 anos e hoje.

    Muitos de seus livros falam de emoções e sentimentos, coisas que as crianças estão aprendendo a identificar e a lidar. Como é escrever sobre algo tão etéreo para crianças e adolescentes? A literatura tem que tocar o sentimento humano, tem que se comunicar através dos sentimentos. Um adolescente tem emoções e curiosidades diferentes das de um menino de 8 anos. Temos que saber reconhecer isso. Em que estágio está esse menino para eu poder falar com ele? Quando eu me comunico, quando o escritor se comunica, tem de se comunicar com o sentimento, não com a razão. A razão aparece quando queremos ensinar alguma coisa. A boa literatura não quer ensinar nada, quer discutir, dialogar com o leitor. Shakespeare escreveu há 400 anos e está aí até hoje. Ele fala de amor, ciúme, cobiça, ambição, sempre sobre sentimentos humanos.

    O senhor já disse em um depoimento ao Museu da Pessoa que “é preciso aprender a desobedecer”. Poderia explicar melhor esse conceito de aprender por meio da desobediência? O amadurecimento é gradativo. Quando temos cinco anos, é bom obedecermos. O papai diz: ‘meu filho, não mexe aí que você vai se queimar’. É verdade, se ele mexer, vai se machucar. Mas, com o tempo, não podemos obedecer cegamente a tudo e todos. Temos de ter senso crítico suficiente para aceitar ou recusar. É preciso se preparar para poder julgar e dizer não quando for preciso. Dizer ‘sim’ é fácil, dizer ‘não’ é difícil.

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