Na madrugada do dia 30 de dezembro de 1976, um corpo foi levado ao IML da cidade de Búzios, litoral do Rio de Janeiro, com quatro perfurações de bala. Segundo o laudo da perícia, tratava-se de um cadáver do sexo feminino, de cor branca, aparentando 32 anos de idade e impregnado de sangue coagulado. A vítima trajava um biquíni azul, com o desenho de uma cabeça de pantera adornando a região frontal, e foi identificada como Ângela Diniz, socialite mineira morta pelo então namorado Raul Fernando do Amaral Street, mais conhecido como Doca Street. A descrição acima pode ser ouvida no primeiro episódio de Praia dos Ossos, podcast documental lançado pela produtora Rádio Novelo, e batizado com o nome do local do crime. O programa revive uma história de obsessão e assassinato, mostrando como o crime foi estranhamente convertido em romance trágico pela opinião pública da época.
Na ocasião, o país mobilizou-se para acompanhar o julgamento de Doca, que não demorou a confessar o delito – não que houvesse, de fato, muitas outras teorias, já que tudo apontava para ele. Na data da morte, Ângela estava com Doca em sua casa na Praia dos Ossos e, depois de uma briga feia, tentou colocar fim ao relacionamento, permeado por ciúmes e agressões. O então namorado não aceitou, sacou a arma e disparou contra a parceira. O barulho dos tiros levou os empregados da casa até o local, onde encontraram-na sem vida, ao lado da arma abandonada pelo algoz que saiu em fuga para a casa dos pais.
Para fundamentar os 8 episódios envolventes que costuram o podcast, Branca Vianna, que conduz a narrativa, e a pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux protagonizaram uma verdadeira imersão: por quase dois anos, entrevistaram mais de 60 pessoas, devoraram obras de todos os tipos sobre o crime e garimparam um extenso acervo de notícias da época. A narrativa, porém, ganha fôlego ao não se restringir ao crime pelo crime, já que, ao contrário da maioria das produções do gênero, não há nada a ser descoberto: Doca, sem aceitar o fim do relacionamento, matou Ângela com 4 tiro. Em vez de destrinchar os pormenores do ato, a produção debruça-se sobre algo igualmente perturbador,a forma como caso foi tratado na época: como uma mulher morta a sangue frio pôde ser transformada em vilã, enquanto o assassino confesso ganhava status de ídolo, com direito a camisetas em sua homenagem e pedidos de liberdade?
A resposta está na combinação de um conservadorismo social exacerbado e uma defesa minuciosamente planejada para desqualificar a vítima. Ângela foi pintada como uma “mulher veneno”, que seduziu o pobre Doca e depois quebrou seu coração, motivando-o a matá-la como uma forma de “legítima defesa da honra”. Nos áudios do julgamento, é possível ouvir o advogado referindo-se a ela sem qualquer decoro ou sinal de respeito, com rótulos como “prostituta da Babilônia”, “devassa”, entre outras expressões do mesmo nível. O pior de tudo? Há 40 anos, o argumento de defesa da honra colou, e Doca foi sentenciado a apenas dois anos de prisão, a serem cumpridos em regime aberto. Foi necessária uma grande movimentação popular e ampla campanha do movimento feminista, sob o slogan de “quem ama não mata”, para conquistar um novo julgamento, que resultou em uma sentença de quinze anos de prisão – apenas três cumpridos em regime fechado. Mais que uma história envolvente de crime, Praia dos Ossos expõe uma visão distorcida de Justiça e os mecanismos que submetem mulheres a uma violência corriqueira, que às vezes perdura até depois da morte.
Confira entrevista com Branca Vianna, idealizadora e narradora de Praia dos Ossos.
Como surgiu a ideia de um podcast sobre um caso tão antigo quanto o de Ângela Diniz? Surgiu em uma conversa com a Paula Scarpin, que trabalha comigo. Estávamos batendo papo e a Paulinha gosta muito de histórias de crime, na linha true crime, enquanto eu morro de medo. Comentei com ela que, durante minha adolescência, dois crimes me marcaram muito, o da Ângela Diniz e o da Claudia Lessin Rodrigues, uma menina de 21 anos morta no Rio de Janeiro de uma maneira bem trágica. O dela eu não acompanhei tão de perto, mas o da Ângela Diniz eu me lembrava muito bem por causa da defesa que o Evandro Lins e Silva, advogado do Doca Street, fez no primeiro julgamento dele. Foi uma defesa super machista, atacando a vítima e dizendo que o Doca não tinha outra conduta possível a não ser matá-la por causa do comportamento, segundo ele, devasso e libertino. Eu tinha 14 anos na época e isso me chocou muito, e levou a uma movimentação do movimento feminista, do qual a minha mãe fazia parte. Descobri que a Paulinha não sabia sobre essa história e fiquei espantada, porque ela gosta muito de histórias de crimes e é feminista também, então começamos a pensar que se ela não conhecia o caso, muitas pessoas, principalmente das gerações mais novas, também não. Aí decidimos fazer o podcast.
Como foi o processo de pesquisa para o podcast? Foi bem longo. Começou no finalzinho de 2018, foram quase dois anos. As pesquisas foram conduzidas pela Flora Thonson Levau, que é uma super pesquisadora. Ela mergulhou de maneira muito profunda e extensa na história. Nós lemos todos os livros publicados sobre o caso, a Glora mergulhou na pesquisa da imprensa, correu atrás dos jornais e revistas disponíveis digitalmente, os que não estavam a gente foi atrás em sebos em lojas de revistas antigas e montamos uma vasta coleção na Radio Novelo. Com isso, fomos fazer as entrevistas. Falamos com mais de 60 pessoas, e íamos sempre eu, a Flora e um técnico de som.
Você comentou que não gosta de histórias de crimes reais. Como foi essa imersão no caso com essa aversão ao gênero? Na verdade a gente não conta a história do crime em si, porque ele não funciona como um relato de true crime. Geralmente, nesse tipo de história você não sabe quem matou, quem morreu, como aconteceu, sempre há algo para ser desvendado. No caso do assassinato da Ângela Diniz, não houve mistério, todo mundo sempre soube, tirando algumas teorias da conspiração, quem matou, como matou e porque matou. Falamos do crime no primeiro episódio e depois o podcast se desenrola para as consequências na sociedade, o julgamento, que tipo de contexto social fez com que essa estratégia de legítima defesa da honra do Doca Street fosse plausível e aceita pelo júri de Cabo Frio, qual foi a repercussão na imprensa, e a vida deles.
Como foi a comoção social na época do caso? Ele virou herói porque ele foi retratado como alguém que matou por amor, o que é um argumento completamente absurdo. Ao invés de ser considerado um assassinato, alegaram que ele nunca tinha matado ninguém antes, que ela tinha provocado e que ele a amava de tal forma que não conseguiria viver sem ela, então era melhor matar e viver sem ela de vez. Virou uma história retratada como romântica e ele se tornou o homem apaixonado que faz tudo por amor, inclusive matar a mulher. Tinha gente com faixa na porta do fórum, as pessoas gritavam pedindo pela soltura dele, foi uma doideira.
O que o crime, e como ele foi tratado dizem sobre aquela época? Dizem muita coisa, sobre aquela e infelizmente sobre a nossa época também. O Doca era namorado da Ângela havia menos de seis meses. Ela tenta terminar o namoro porque ele era muito ciumento e ela não aguentava mais, e ele a mata por causa desse ciúme. Isso é algo bem típico nesses casos, a hora da separação é muito perigosa para a mulher, em termos de risco de feminicídio, como foi o caso da Ângela. Em geral, acontece logo depois da separação, ou quando a pessoa está refazendo a vida, começa a namorar outro homem. Foi basicamente o que aconteceu com ela e a gente precisa lembrar que o Brasil estava em uma ditadura em 76, e ainda longe da redemocratização. O país era muito mais conservador do que é hoje em dia e esse tipo de atitude de alegar que ela queria ter amantes, gostava de mulher, era obcecada por sexo e teve vários namorados era considerada o suficiente para se matar uma mulher, e em alguns lugares ainda é.
Você acha que evoluímos de alguma forma de lá para cá? Melhorou bastante, até legalmente, com a lei Maria da Penha e do Feminicídio, que torna mais fácil enquadrar esse tipo de assassinato. Não há muitas dúvidas de que o caso da Ângela seria classificado como feminicídio hoje em dia, porque é um caso típico. No entanto, ainda tem advogados que usam essa defesa de que a atitude da mulher desonrou o homem para tentar inocentar o cliente ou amenizar a sentença, mostrar que o sujeito tinha um motivo para matar, e às vezes funciona.
Como tem sido a recepção do público? Tem sido muito boa, a gente vê as pessoas comentando nas redes sociais, mandem email para a produtora, tem um boa audiência. É impressionante como toda uma geração mais jovem nunca ouviu falar do caso, e ao mesmo tempo tem muita gente que lembra e comenta nas redes sociais da Novela sobre as lembranças pessoais de que morava perto, tinha uma prima na praia, conhecia alguém que conhecia a família do Doca ou da Ângela, e muitas coisas ali no entorno do crime.
Você acredita que o podcast pode fazer as pessoas enxergarem o caso de maneira diferente depois de tantos anos? Eu acho que sim, pelo menos na nossa bolha. Não digo que todo mundo, mas hoje muita gente consegue ver a loucura que foi. Quando você ouve o áudio do julgamento, no segundo episódio, é muito impressionante. O sujeito xinga vítima, mesmo os advogados que, hoje em dia, usam a legítima defesa da honra, dificilmente poderiam fazer uma defesa chamando a vítima de prostituta da babilônia, vênus nociva, mulher devassa, umas coisas muito loucas sobre uma mulher que estava lá sentada e morreu com quatro tiros. Mesmo que ela fosse uma prostituta da babilônia, uma devassa, não justifica o assassinato, é algo que não vêm ao caso. Ele matou ela, todo mundo sabia, tinha testemunhas, ele confessou, não havia a menor dúvida. Qualquer atitude que ela tivesse, fora tentar matar ele, o que claramente não era o caso, não tem nenhuma importância o que ela fez ou deixou de fazer, e mesmo assim a defesa inteira foi baseada nisso.