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Patti Smith: a intelectual do punk

Por que a americana — que está lançando dois livros e fará apresentações no país nesta semana — é a maior poeta feminina já produzida pelo rock’n’roll

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h09 - Publicado em 15 nov 2019, 06h00
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  • Na cerimônia de entrega do Nobel de Literatura de 2016, Bob Dylan honrou sua fama de recluso enigmático: não deu as caras para receber o prêmio. Em seu lugar, mandou uma figura de aparência não menos desalinhada: a americana Patti Smith. Com seus cabelos brancos desgrenhados e roupas que há anos desconhecem um ferro de passar, ela fez um discurso comovente. Patti estava ali para dar uma força ao amigo e ídolo Dylan. Mas tinha estatura de sobra para brilhar por si própria. Poeta, cantora e memorialista extraordinária, a artista é a equivalente feminina daquilo que Dylan sintetiza: a perfeita união entre música popular e literatura. “Creio que encontrei um caminho na minha carreira. Se inspirei outras pessoas a fazer o mesmo, fico feliz”, disse ela a VEJA (confira os principais trechos da entrevista abaixo).

    O público brasileiro tem, portanto, razões para comemorar. Aos 72 anos, Patti é a atração maior do festival Pop­load, que acontece nesta sexta-feira, 15, no Memorial da América Latina, em São Paulo (ela fará outro show no sábado 16, com ingressos já esgotados). O momento Patti se completa com o lançamento de dois livros dela no país (pela Companhia das Letras). Devoção é um breve volume de ficção e ensaísmo. Em O Ano do Macaco, ela rememora as relações com o amigo Sandy Pearlman, que a incentivou a ser cantora, e o dramaturgo e ex-­affair Sam Shepard — mortos, respectivamente, em 2016 e 2017.

    A vida de Patti é uma sucessão de feitos e tragédias. Nascida no subúrbio de Chicago, filha de pai ateu e mãe testemunha de Jeová, ela se mudou para Nova York na juventude — e logo se tornaria uma força catalisadora da cena cultural dos anos 70. Estrela do movimento punk local, Patti ganharia o epíteto de poetisa do rock ao promover o casamento de guitarras cruas e letras literárias resumido num disco clássico e fundamental, Horses (1975). Sua voz rouca e furiosa já foi bem definida por Michael Stipe, vocalista do R.E.M.: “Um homem, ao acordar, faz todo tipo de grunhido para provar que está vivo. Para eu sentir que estou vivo, só preciso ouvir Patti Smith”.

    A tragédia persegue a cantora desde o auge como símbolo punk. Em 1977, ela caiu de um palco durante um show, lesionando a coluna vertebral. A partir de então, distanciou-se dos holofotes. Em 1989, viu o fotógrafo Robert Mapplethorpe — seu amigo e ex-namorado (embora fosse gay) — morrer de aids. Cinco anos depois, um novo baque: a perda do marido e pai dos dois filhos, o roqueiro Fred “Sonic” Smith, ex-guitarrista do MC5, e também do irmão, Todd.

    Por meio da literatura e de esparsos discos tardios, Patti expiou a dor das tragédias. Em 2010, lançou Só Garotos, livro sobre sua amizade com Mapplethorpe, e acabou tomando gosto pela escrita. Fez outras três obras, e há mais uma a caminho. “Fico triste quando termino um livro, porque sinto falta da atmosfera. É por isso que logo escrevo outro”, diz. Não deixa de ser irônico que a musa do punk, que pregava a ruptura radical com o passado, agora seja uma memorialista de mão-cheia. O que Patti pensa da hipótese de, como seu chapa Dylan, ganhar o Nobel um dia? “Isso não cabe a mim decidir. Só quero que reconheçam que faço um bom trabalho.”


    “ESCREVER É IGUAL A COZINHAR”

    Patti Smith fala de seu método de criação literária, do punk e de como a perda de pessoas queridas a inspirou.

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    A senhora possui algum método para escrever seus livros? Para mim, escrever é igual a cozinhar. Você pega os ingredientes, coloca num caldeirão, tempera. Depois, adiciona pão, um pouco de arroz e tem sua história. Que pode sair da sua imaginação ou se basear em algo real. Escrevo assim todos os dias.

    Boa parte de seus discos e livros fala de pessoas amadas que já morreram. Por que a dor da perda é uma inspiração tão forte no seu trabalho? Maria Callas é minha cantora de ópera predileta porque ela consegue como poucas projetar a dor numa canção. Ao mesmo tempo, porém, tem muito amor pela vida. Tento passar essa mesma ideia nas minhas letras e livros. Falo da tristeza de não ter mais essas pessoas por aqui, mas também da alegria que elas me proporcionaram. É uma maneira de trazê-las de volta à vida.

    Na sua opinião, Donald Trump será reeleito em 2020? Espero que não. Ele foi ruim para a nação e para nossa política exterior. Em três anos, destruiu tudo o que foi feito de bom por Barack Obama e seus antecessores.

    A senhora já afirmou que Obama poderia ter sido mais corajoso. Qual o problema dele? Obama não é uma má pessoa, mas poderia ter sido mais enérgico. Ele era jovem, idealista e inexperiente e foi cair em Washington, um dos lugares mais cínicos da América. Poderia ter sido mais bravo na hora de punir as pessoas que poluem os rios e destroem o meio ambiente. Mas gosto muito dele.

    Sua ascensão como cantora se deu na Nova York suja e decadente dos anos 70. Até que ponto a crise econômica turbinou a cena punk local? De fato, minha Nova York era bem diferente da de agora. Em 1976, a cidade ficou à beira da falência, os aluguéis eram baratos e havia grande comunidade de artistas. Hoje, é uma cidade movida a cartão de crédito, na qual as pessoas gastam até o que não têm. Mas aquela música foi feita pelas pessoas, não pela cidade. Quem garante que um novo punk não esteja nascendo agora numa garagem de Hong Kong ou do Cairo?

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    Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661

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