Segundo o filósofo Søren Kierkegaard (1813-1855), a vida só pode ser de fato compreendida ao se olhar para trás, ou seja, para o que passou. Mas com uma ressalva: “Ela só pode ser vivida olhando-se para frente”. A fala do pensador dinamarquês se aplica bem à produção cultural que foi digna de nota neste ano. Do cinema à TV, passando pela música e pela literatura, o passado e o presente se mesclaram, possibilitando uma visão em retrospecto de personalidades e eventos da vida real, assim como um passeio profundo pelas relações que dão significado à vida humana. Afinal, depois de dois anos duros de pandemia e de um luto generalizado, o mundo voltou a algo próximo da normalidade. No cinema, o belíssimo filme Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo retratou uma típica família de imigrantes chineses nos Estados Unidos. Entre viagens por realidades paralelas, o longa explora a questão ensurdecedora: “e se?”. E se a protagonista tivesse tomado uma decisão diferente no passado, ela seria mais feliz hoje? Foi ao olhar para trás também que a escritora francesa Annie Ernaux estabeleceu uma narrativa própria que lhe rendeu o Nobel da Literatura em 2022 — coincidentemente, a obra da autora, que escreve sobre eventos pessoais conectados à história mundial, chegou ao Brasil com força neste ano. Na TV, o enorme volume de séries lançadas pelas plataformas de streaming encarou um concorrente imbatível: o derivado de Game of Thrones, A Casa do Dragão. A superprodução da HBO, inicialmente, causou desconfiança: a preocupação era que ela nada mais fosse que um pastiche da antecessora. Mas a série mostrou a que veio ao explorar com vigor notável o mundo fantástico criado por George R.R. Martin. O passado distante ecoou ainda entre os mais jovens. O cantor pop Harry Styles lançou seu terceiro álbum, Harry’s House, mergulhado em referências do rock dos anos 70 e 80. De Styles a Ernaux, nota-se uma semelhança: não se trata de uma nostalgia pura e simples, mas sim de um acerto de contas com o que passou — em uma peneira que separa o que deve ser enterrado do que deve ser reverenciado. Que o diga a sequência de Avatar, lançada treze anos depois de sua estreia explosiva em 2009. A megaprodução chegou na hora certa: o mundo está pronto para seguir adiante — e qualquer empurrãozinho é bem-vindo. Confira o melhor do entretenimento em 2022.
1 – TUDO EM TODO O LUGAR AO MESMO TEMPO
(Everything Everywhere All at Once; Estados Unidos; 2022)
Envolta por uma montanha de papéis, Evelyn (Michelle Yeoh) organiza documentos para prestar contas à Receita. Ao mesmo tempo, administra a lavanderia da família, alfineta constantemente o marido e cuida do pai idoso. A cereja do bolo de sua lista de problemas é a filha, Joy (Stephanie Hsu). A garota é a primeira entre eles, imigrantes chineses, a nascer nos Estados Unidos, e destoa em tudo da mãe — e, para o pavor de Evelyn, ela planeja apresentar a namorada ao avô retrógrado. Os diretores Dan Kwan e Daniel Scheinert pincelam rapidamente essa introdução: com criatividade e domínio narrativo invejável, a dupla dá um giro de 360 graus na trama, levando os personagens e o público a uma viagem para lá de inesperada. Evelyn é interceptada por uma versão de seu marido de outra realidade que a expõe a outras versões dela mesma, fruto de decisões diferentes das que ela tomou na vida. Em uma delas, se não se casasse, Evelyn seria uma estrela de cinema. Mas seria mais feliz? A questão embala o passeio filosófico regado a humor, drama e ação no filme que logo se revelou uma pérola do cinema mundial.
2 – AVATAR: O CAMINHO DA ÁGUA
(Avatar: The Way of Water; Estados Unidos; 2022)
Quando lançou Avatar, em 2009, o diretor canadense James Cameron revolucionou o cinema. Câmeras exclusivas em 3D foram criadas especialmente para a produção, que soma 2,9 bilhões de dólares em bilheteria — um recorde ainda inalcançado. Perfeccionista, Cameron demorou treze anos para finalizar a primeira de quatro sequências e elevou o nível de dificuldade das filmagens a outro patamar. Rodada principalmente embaixo d’água, a trama retorna à mítica Pandora e oferece mais cenas deslumbrantes e uma nova mensagem ecológica: para Cameron, proteger o planeta é primordial — e seus filmes são ferramentas para angariar adeptos à causa.
3 – ELVIS
(Elvis; Estados Unidos e Austrália; 2022)
O diretor Baz Luhrmann é afeito a estéticas espalhafatosas — prova disso é seu filme mais famoso, Moulin Rouge. Logo, havia o receio de que o cineasta australiano transformasse a cinebiografia de Elvis Presley em uma caricatura do cantor. Mas, ainda bem, essa expectativa não se cumpriu: Elvis apresenta um roqueiro cool e muito distante do cara cafona e inchado que morreu aos 42 anos, imagem que ficou gravada na memória emotiva das pessoas. O filme é narrado pelo seu controverso empresário, o Coronel Parker (um canastrão Tom Hanks), com o excelente Austin Butler no papel principal. A trilha é um deleite à parte: versões atuais das músicas de Elvis mostram que o cantor nunca esteve tão vivo.
4 – O HOMEM DO NORTE
(The Northman; Estados Unidos e China; 2022)
Os vikings pontificaram na Europa medieval por menos de 300 anos, entre 793 e 1066 — mas, ao menos na cultura pop, seu reinado continua fortíssimo. Para além da pancadaria e da testosterona, o diretor americano Robert Eggers provou no excepcional O Homem do Norte que é possível extrair lições profundas da civilização viking. A história de Amleth, guerreiro em busca de vingança contra o tio que usurpou o trono de seu pai, vem da mesma fonte do folclore nórdico que inspirou uma seminal tragédia de Shakespeare, o Hamlet. Alexander Skarsgard transpira masculinidade tóxica na pele do protagonista desta trama que ensina como o ódio e a violência envenenam e corrompem as relações humanas.
5 – MEDIDA PROVISÓRIA
(Brasil; 2022)
Num futuro com a cara do Brasil do presente, o governo cria uma lei draconiana: a título de “reparação”, os descendentes de escravos são brindados com a deportação de volta para a África de seus ancestrais. O primeiro longa com direção de Lázaro Ramos começou a ser gestado antes da chegada do bolsonarismo ao poder, mas mexeu num vespeiro em momento oportuno: ao expor sem meias-palavras as chagas do racismo e o cinismo odioso que cerca o tema, o filme sofreu tentativa de boicote e incendiou a polarização nas redes sociais. Ao final, a distopia protagonizada por Taís Araujo e pelo inglês Alfred Enoch, como o casal que conduz a resistência à lei fictícia, fez bela carreira nos cinemas — provando que uma trama pode ser politizada sem abdicar de entreter.
Publicado em VEJA de 28 de dezembro de 2022, edição nº 2821