Estava tudo pronto para Fernanda Abreu subir ao palco na sexta-feira, 23 de março, quando chegou a notícia: o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, havia baixado um decreto obrigando todas as casas de espetáculos a fechar as portas. Naquele dia, Fernanda gravaria o DVD da turnê Amor Geral, na estrada de 2016, culminando nas comemorações de seus trinta anos de carreira. Para não perder todo o trabalho, a artista decidiu gravar o disco assim mesmo – só que sem público, cumprindo a ordem estadual.
O resultado é um DVD tecnicamente e esteticamente perfeito, mas sem o calor e a emoção do público, que ficou do lado de fora sem poder entrar. O álbum conta com os principais hits da sua carreira, como Veneno da Lata, Rio 40 Graus e Garota Sangue Bom, e também de Amor Geral, como Outro Sim e Saber Chegar. Em conversa com VEJA, a artista relembrou daquele fatídico dia e não poupou críticas ao governo atual:
Faltando poucas horas para o início do show de gravação do DVD, vocês foram pegos de surpresa com o decreto do governador Wilson Witzel, atualmente afastado. Como reagiram? Foi bem complicado porque a gente tinha uma expectativa grande, com uma equipe de 45 pessoas. Achei que o decreto era para o próximo fim de semana, não algo imediato. Se o Imperator fosse um lugar privado, a gente até tentaria fazer com o público, mas ele é um equipamento do estado. Não dava para desobedecer a ordem. Chamei a banda toda e falei para eles: “A gente vai gravar assim mesmo, mas sem plateia.” Disse para eles imaginarem um Rock in Rio para 100 000 pessoas. Todo mundo ficou meio inseguro, mas seguimos como se estivesse tudo normal. A gente nem sabia direito o que era o coronavírus. Estava todo mundo se abraçando e se beijando. A gente não tinha noção.
Como foi se apresentar sem o calor da plateia? Foi a coisa mais difícil. Eu disse para a equipe: “Podem aplaudir se estiverem gostando”, mesmo que o som vazasse no DVD. Tinha de ser uma coisa natural. Um técnico do som disse que, se eu quisesse, ele colocaria umas palmas falsas no final de cada música. Nem pensar! Para mim, o importante era situar esse DVD na pandemia de 2020. Foi um DVD gravado sem público. Mas foi difícil, porque o show precisa da resposta dos fãs. Eu preciso ver a cara das pessoas e todo mundo dançando. É muito importante para o artista no palco.
Em seus trinta anos de carreira, você sempre foi muito ligada ao funk. Você engrossa o coro dos que veem preconceito contra o gênero? A minha carreira se mistura com o funk. Lá em 1989, com o DJ Marlboro, quando ele lançou o primeiro disco de funk carioca, eu também estava lançando meu primeiro disco: SLA Radical Dance Disco Club, em 1990. Faz parte da minha história e da minha trajetória. A origem do funk é a periferia e a favela. É assim até hoje. Atualmente, temos artistas que viraram mainstream, como a Anitta, que veio de Honório Gurgel, a Ludmilla, o Nego do Borel. Eu acho que o preconceito contra o funk é racial. É racismo mesmo. Não é um preconceito contra o ritmo ou contra a batida. Tem a ver com a origem do funk. As pessoas ficam incomodadas com as letras. Eu sempre disse que, para acabar com as letras proibidonas, é preciso mudar a realidade dessas pessoas. Na favela tem bala perdida todo dia, traficante, falta de educação, falta de cultura. Não tem saneamento básico. O funk é um estilo de música potente, poderoso e reflete essa realidade.
Como você responde às críticas de que a música pop é um estilo descartável? Eu tenho trinta anos de carreira. O pop é considerado descartável e efêmero até a página 2. Se você souber levar a sua carreira, se você se desafiar e levar para o público as coisas que você acredita de verdade, em matéria de assuntos, linguagem, estética, então eu acho que dá para seguir uma carreira longa.
Tivemos um breve retorno aos shows, mas a pandemia ainda não acabou. Você tem recusado convites para fazer shows? As pessoas têm de estar numa situação de proteção boa. O que a gente está vendo é a flexibilização e um aumento dos casos de Covid-19 no Rio de Janeiro e em São Paulo. Então, eu prefiro esperar a vacina, pois estaria botando minha equipe, banda, todas as pessoas que trabalham comigo, além dos fãs, em risco. Eu não quero essa responsabilidade. Apesar de querer muito voltar aos palcos. Eu adoro o palco. Vamos ver com os novos protocolos. Se tudo der certo, beleza.
Como carioca da gema, como avalia o Rio de Janeiro atualmente? Sinceramente? A gente vive um pesadelo. Essa pandemia no governo Bolsonaro… não bastasse a pandemia, com todo mundo morrendo e inseguro. A humanidade não sabe direito sobre os vírus. E aqui, essa palhaçada. Eu não acho que o Bolsonaro é louco. Ele é de extrema-direita e está pouco se importando com a população brasileira. Ele fica sem máscara, faz aglomeração, diz que é uma gripezinha. No governo do estado, tivemos esse Wilson Witzel. É lamentável. Ninguém sabe quem é esse cara ou como ele foi eleito Um negócio muito esquisito. Agora, com a prefeitura com o Eduardo Paes, eu acho que vai ser melhor. Ele é um cara que ama o Rio e isso faz uma diferença brutal. Se o Crivella tivesse sido reeleito, seria para o povo se mudar do Rio. O Rio está se degradando ao longo dos anos e chegou ao fundo do poço. O Rio precisa ser refundado.
Você também é muito ligada ao Carnaval. Como acha que a população vai se comportar em fevereiro? O Carnaval do sambódromo já foi adiado para junho. Agora, meu medo é o boom dos blocos. O pessoal vai juntar os amigos, pegar a cerveja e ir para a rua. Não sei com o Eduardo Paes vai fazer com relação a isso. Não sei como controlar as pessoas assim. É bem difícil.
Sua filha é médica e está trabalhando na linha de frente. Como vê o trabalho dela? A Sofia é recém-formada em neurologia e está fazendo residência no hospital da UERJ. Ela pegou Covid e ficou um mês fora de casa isolada. Ela cuida das pessoas que sofreram sequelas neurológicas com o vírus. Ainda é jovem e saudável e os sintomas que ela teve foram falta de olfato e paladar. Eu fico preocupada, sim, especialmente em saber que existem casos de reinfecção. Mas ela escolheu essa profissão e sabe se cuidar.
Suas músicas sempre mostraram a mulher empoderada. O machismo aumentou ou diminuiu nos seus trinta anos de carreira? Desde a primavera feminina de 2013 – que, para mim, foi o principal movimento social que eu vi nos últimos anos – houve um despertar importante no movimento feminista. Aquele feminismo envergonhado foi embora. O feminismo é um movimento de todo mundo. Tem o lugar de fala das mulheres, mas essa luta permeia toda a sociedade, porque o menino que está nascendo, o marido, o avô que estão em casa também participam do processo. Todos têm de fazer parte desse entendimento.
A cantora Fernanda Abreu durante a gravação do seu novo DVD ao vivo