Em 1963, a francesa Annie Ernaux, laureada com o Nobel de Literatura em 2022, era uma promissora estudante de Letras de 23 anos. Em outubro daquele ano, ela foi ao médico para confirmar suas suspeitas: estava grávida. Solteira, sem o apoio do pai da criança, e numa época na qual nem ao menos poderia compartilhar com a família e os amigos a gestação, Annie decidiu interromper a gravidez. Dava-se início a uma trajetória de dores, físicas e emocionais, que ela só conseguiu relatar com honestidade quarenta anos depois, no livro O Acontecimento — adaptado em um filme premiado este ano, disponível na plataforma HBO Max.
Direta e cortante, a história de Ernaux, narrada sem meias palavras em seu livro, não é apenas dela: mistura-se à de muitas outras pessoas das mais diversas épocas. Publicado na França nos anos 2000, 25 anos após a legalização do aborto no país, em 1975, ele escancara uma realidade perigosa e solitária há tempos superada por lá, mas ainda latente em lugares como Brasil e Estados Unidos: em vez de ser tratado como uma questão coletiva de saúde pública e de escolhas individuais, o aborto continua preso ao maniqueísmo dos que são contra ou a favor e suas ideias morais. “Que o modo como vivi essa experiência do aborto – a clandestinidade – remonte a uma história superada não me parece um motivo para deixá-la enterrada”, proclamou a autora.
Sua experiência, incluindo os riscos e desespero descrito nas paginas, é uma janela para a complexidade de uma história presente na vida de tantas mulheres. Decidida a interromper a gravidez, mesmo que isso lhe custasse sua liberdade — ela poderia ser condenada à prisão se fosse pega —, Ernaux buscou a ajuda de médicos e amigos, mas os riscos envolvidos em auxiliar um aborto e os julgamentos morais fizeram com que ela tivesse que lidar sozinha com a situação. Optou, então, por um procedimento perigoso. “Diante de uma carreira destruída, uma agulha de tricô na vagina não pesava muito”, escreveu antes de perceber, no meio do caminho, que não era capaz de ferir a si mesma. Buscou, então, a ajuda de um médico, que não ousou falar sobre aborto, mas receitou penicilina caso ela encontrasse alguém disposto a realizar o procedimento. Muita procura e sofrimento depois, a universitária, encontrou uma enfermeira disposta a ajudá-la. Annie quase morreu no processo.
Após uma semana andando com uma sonda no útero, a escritora abortou sozinha em um banheiro. Comovida, uma amiga a ajudou a cortar o cordão umbilical do embrião, e tentou garantir sua recuperação. Mas a situação ficou grave demais para as duas jovens: sangrando sem parar, Annie implorou por um médico e, quando ele veio, achou que fosse ser deixada ali para morrer de hemorragia. Foi encaminhada, porém, a um hospital, onde o sangramento foi controlado, mas não sem antes submeterem a jovem à uma série de violências pela decisão que tomou. Mais tarde, descobriu que tudo seria diferente caso tivesse informado que era uma jovem universitária, e não uma “simples operária”, escancarando ainda a diferença de tratamento dado ao direito de escolha das mulheres de acordo com sua classe social. Um relato poderoso que merece ser conhecido.