No fim do século XIX, os territórios que hoje compõem países como Ucrânia, Belarus e Moldávia eram parte do império dos czares — e a mão sempre pesada e autoritária da “Mãe Rússia” mantinha a vasta população judia local sob vara curta. Essas pessoas não podiam entrar nas grandes cidades sem autorização; volta e meia, eram vítimas de massacres odiosos, os pogroms. O passado opressivo remete, inevitavelmente, ao tormento infligido pelos russos aos vizinhos ucranianos na guerra de 2022. Mas, ainda assim, um menino judeu revelava-se capaz de sonhar. Nascido na pequena Vitebsk, na atual Belarus, Marc Chagall (1887-1985) voava longe na imaginação: dentro de sua mente, o casario e as festas religiosas da infância se diluíam em visões fantásticas de galos, vacas e asnos flutuando em uma atmosfera de cores vívidas. Nas imagens líricas que mais tarde traduziriam seus vislumbres de criança em obras célebres, o pintor e a amada Bella surgiam entregues à paixão — como se desafiassem, assim, as durezas da vida. É essa história de esperança e superação que conduz a belíssima mostra Marc Chagall: Sonho de Amor, que entra em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, a partir da quarta-feira 16.
A maior retrospectiva já feita da obra de Chagall no país vai passar também por Brasília, Belo Horizonte e São Paulo até o início de 2023 — e é um pacote embalado para consumo popular. Com orçamento de 9 milhões de reais apenas em recursos de incentivo, a exposição chega com selo de aprovação no exterior: antes da pandemia, fez sucesso em cidades europeias como Nápoles. Mas a versão brasileira ganha um acréscimo valoroso. Além das 179 telas, gravuras e desenhos de acervos privados estrangeiros, serão exibidas sete pinturas pertencentes a instituições nacionais. O número parece ínfimo, mas sua relevância é enorme: obras como Primavera, do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, atestam a qualidade dos trabalhos do artista russo espalhados por nossas coleções.
Se o nome Chagall atrai filas pelo mundo, é por uma razão singela: a simplicidade intuitiva de seus quadros provoca identificação imediata — e irresistível — no público. “Ele é o mestre supremo da cor na pintura moderna. Compreender sua obra não depende de conhecimento prévio sobre arte: ela é acessível a pessoas de qualquer idade e condição”, diz a espanhola Lola Durán Úcar, curadora da exposição. A temática realçada no evento — a relação de Chagall com o amor — é um chamariz que obviamente redobra a aura pop do artista. Mas não configura uma estratégia de divulgação apelativa: Chagall realmente propalava que esse sentimento era impulso fundamental de sua criação. “Há só uma cor que dá sentido à vida e à arte: é a cor do amor”, dizia. Como esclarece a curadora, o conceito ia muito além do puro romantismo: “O amor, para Chagall, deve ser compreendido de forma ampla: é o amor a Deus, à natureza, às pessoas.” E, claro, às mulheres.
Somente com muita paixão pela vida, de fato, alguém conseguiria vencer os obstáculos que ele enfrentou. Chagall veio de uma família humilde para a qual o desejo do filho de ser artista (antes de pintar, ele pensou em ser violinista) era visto com desconfiança. Sobreviveu a duas guerras mundiais, à perseguição aos judeus e à Revolução Russa de 1917. A princípio, trabalhou como professor no regime bolchevique, mas logo abandonou o barco (e a Rússia) porque seu otimismo sem amarras se chocava com os dogmas do construtivismo, estilo oficial soviético. Chagall sempre foi mais que isso: sua obra era “sobrenatural”, definiu o poeta e amigo Apollinaire.
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Para atravessar tantas provações, Chagall agarrava-se a seu porto seguro: as reminiscências da aldeia aprazível que fora seu mundinho na infância, com seus bichos, tipos humanos adoráveis e rituais religiosos. Parte da mostra, aliás, é devotada às gravuras que ele fez sobre a Bíblia. Homem de fé e orgulhoso das raízes judaicas, Chagall encontrou em Bella, sua paixão juvenil e primeira esposa, um modo de manter a sintonia com o interior da Rússia mesmo após mudar-se para Paris ou exilar-se nos Estados Unidos, nos tempos de Hitler.
O relacionamento com Bella ultrapassava a paixão romântica. A moça de família abastada, para a qual era proibitivo unir-se ao pobretão Chagall, acabou sendo um esteio intelectual em sua carreira. Bella ajudou o marido a construir a imagem de artista mítico conectado às origens mesmo no exterior. Após a morte da esposa por uma enfermidade repentina e fulminante, nos anos 1940, Chagall se casaria mais duas vezes. Até o fim da vida, porém, Bella continuou a povoar suas telas. Que a alegria de viver de Chagall seja uma inspiração para estes dias de guerra e pandemia.
Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780
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