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O primeiro jovem a falar

Holden Caulfield, o garoto desajustado de 17 anos, retorna em nova tradução de 'O Apanhador no Campo de Centeio', clássico do americano J.D. Salinger

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 26 jun 2019, 15h57 - Publicado em 14 jun 2019, 07h00

“Se você quer mesmo ouvir a história toda, a primeira coisa que você deve querer saber é onde eu nasci, e como que foi a porcaria da minha infância, e o que os meus pais faziam antes de eu nascer e tal, e essa merda toda meio David Copperfield, mas eu não estou a fim de entrar nessa, se você quer saber a verdade.” Quando Jerome David Salinger (1919-2010) decidiu abrir O Apanhador no Campo de Centeio com essas exatas palavras, não era apenas uma das mais celebradas frases iniciais da literatura contemporânea que estava nascendo: surgia um clássico, que já acumula mais de 70 milhões de cópias vendidas em todo o mundo. O romance fez mais do que marcar sucessivas gerações de leitores por seu apelo poderosamente pessoal: era todo um gênero, se não toda uma cultura, que nascia com a voz de Holden Caulfield, o sensível, irônico, doce e triste narrador e protagonista do livro publicado em 1951. De casa nova no Brasil, a editora Todavia — que adiante relançará toda a obra de J.D. Salinger ­—, Holden chega ao público brasileiro agora em uma linda edição, que reproduz o trabalho gráfico da capa original americana, e em tradução nova, assinada por Caetano W. Galindo (que já nos deu brilhantes traduções de James Joyce e Tom Stoppard, entre outros), o que permite aos leitores, jovens e velhos, avaliar o alcance e a vitalidade da cultura que ganha voz com Holden.

Mas que voz é essa, afinal? Se prestarmos atenção, veremos que Holden começa por nos dizer como sua narrativa não será: ela não será uma história à moda de Charles Dickens, autor de David Copperfield — ou seja, não será uma obra tradicional sobre a infância, juventude e vida adulta dos personagens. Ocorre que essa era praticamente toda a tradição de literatura sobre o universo jovem que existia, e nisso reside a grande transformação realizada por Salinger: ele não se satisfez com o convencional narrador adulto que relembra, com linguagem e consciência adultas, seus dias de adolescente. É o próprio Holden quem nos conta sua história e relembra acontecimentos bem recentes, com o vocabulário e a visão de mundo de um garoto nova-iorquino de 17 anos. Com Holden Caulfield, Salinger — o autor famosamente recluso cujo centenário celebramos neste ano — inaugurava o narrador jovem moderno.

O APANHADOR NO CAMPO DO CENTEIO – de J.D. Salinger (tradução de Caetano W. Galindo; Todavia; 256 páginas; 59,90 reais) (//Divulgação)

Reprovado em quatro das cinco disciplinas que cursava na Pencey Prep, um internato de elite, Holden é expulso da quarta escola em que estudou. Despede-se de seu professor de história, acaba brigando com o colega de quarto e decide antecipar seu retorno a Nova York. A leitura que vem despertando o fascínio de tantos jovens há quase setenta anos concentra­-se em mostrar-nos uns poucos dias na vida desse adolescente em Nova York, fumando como uma chaminé, comprando uma briga ou outra, tentando beber em algum bar de hotel ou “dar uns malhos” em alguma menina e, claro, querendo saber para onde vão os patos do Central Park no inverno (pergunta que ficou famosa no livro). Se a linguagem adotada era razoavelmente escandalosa para a época, com um palavrão (leve) a cada três frases, o desafio do tradutor é saber transmitir a justa medida entre o frescor da expressão jovem, de um lado, e seu sabor histórico, de outro — afinal, estamos falando de um livro do início dos anos 1950. Durante muitas décadas, Holden expressou-se em português pela tradução de Jorio Dauster, trabalho cheio de soluções elegantes, mas que já há algum tempo traz um sabor datado pelas escolhas semânticas — justificadas ao tempo da tradução. O trabalho de Caetano Galindo dá vida e nova fluência ao texto, com a escolha de novas soluções para certas expressões idiomáticas, como o recorrente “pelamordedeus”, mas também não escapa da armadilha arcaizante de reproduzir a fala cheia de gírias e precariedades de um jovem de 1951 — não nos livramos de expressões como “pra chuchu”, que já aparecia na tradução de Dauster.

Holden oferece mais do que alguns episódios juvenis narrados na gíria de seu tempo: o protagonista tem, nas palavras do crítico Louis Menand, uma “atitude diante da vida”. Holden vê falsidade em todas as imposturas da vida adulta. Tudo lhe parece “fajuto”, desprovido de autenticidade. O discurso do personagem — precariamente articulado, pois é um adolescente, mas literariamente preciso, pois é essa precariedade que precisa ser comunicada — parece ser o de uma recusa geral de tudo o que o cerca, e de uma tristeza aguda que o acompanha em quase todos os episódios do livro — da tentativa de encontro com uma prostituta ao reencontro com a jovem Sally Hayes. Tudo isso contribuiu para que o livro, que seguiu como um sucesso incrível pelas décadas futuras, fosse lido como um grande representante da cultura jovem — praticamente inexistente antes da década de 50 — e sua recusa, ainda que escapista, dos mecanismos frios e convencionais da vida adulta aburguesada. Embora isso não seja falso, diz mais respeito à recepção do livro do que ao espírito de O Apanhador…

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Isso porque escapa aos leitores apegados a essa interpretação algo essencial à narrativa do jovem Caulfield: muito mais importante que seus percalços como mau aluno e sua melancólica rebeldia é a profunda, dolorosa e verdadeira tristeza do menino que enfrenta o luto pela perda do irmão, Allie. É nas páginas em que Holden descreve a alegria genuína do irmão, que morreu de leucemia, sua inocência e inteligência simples e verdadeiras, preservadas em sua memória, que entenderemos o que provoca em Holden o mal-estar, a tristeza e todo o sentimento de ser desajustado. Quando ele descreve como atravessava as ruas nova-iorquinas com a sensação de um abismo que jamais conseguiria cruzar, mas que, fechando os olhos, lembrava-se do irmão para sentir-se seguro e prosseguir na travessia, somos confrontados, nós leitores — especialmente quando já adultos —, com um sofrimento tão pungente quanto aquele dos maiores personagens da história da literatura.

Sim, parece grandioso, e é, mas de um jeito muito americano, muito próprio de Salinger, que é o da simplicidade das coisas genuinamente belas. É a elas que Holden se agarra, e graças a isso a vida gira — como a irmãzinha caçula de Holden, Phoebe, a girar no carrossel com sua felicidade gratuita. Como o próprio Holden, todo leitor deste livro já foi salvo, um pouco, de seus males, de suas tristezas, quaisquer que elas fossem — os piores lutos, as mais banais insatisfações —, pela beleza autêntica criada por Salinger. Que mais leitores se salvem assim.

 

Publicado em VEJA de 19 de junho de 2019, edição nº 2639

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