O inimigo da terra plana
Nos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães, romance narra a façanha que provou que o planeta era redondo (só alguns malucos não acreditam)

Ao cooptar homens para sua célebre empreitada marítima, o navegador Fernão de Magalhães enfrentou toda sorte de obstáculos. Seu plano de encontrar uma nova (e ousada) rota rumo ao Oriente, contornando o mapa pelo sul do então recém-descoberto continente americano, contava com o patrocínio entusiasmado do rei da Espanha. Magalhães, porém, era visto com desconfiança por ser de Portugal — e os dois países vizinhos eram rivais encarniçados na conquista dos mares. No cais, enquanto monitorava os remendos nas velhas caravelas que lhe confiaram para a viagem, ele era hostilizado pelo povão por seus laços com o inimigo. Dentro da corte, mexeram-se os pauzinhos para que várias das cinco embarcações da esquadra tivessem nobres espanhóis como comandantes — e, naturalmente, atuassem como espiões a bordo. Para além das intrigas geopolíticas, era preciso lutar contra antigas concepções sobre o mundo. Muitos não quiseram embarcar por temer que a expedição se perdesse em geleiras. Havia, por fim, a turma que insistia em achar que a Terra era plana — para esses, os navios que ousassem dirigir-se às suas bordas “iriam se precipitar num vazio sidéreo”.

Aqueles que acreditavam no terraplanismo compunham, então, uma minoria em franca extinção: como narra o escritor italiano Gianluca Barbera em Fernão de Magalhães, o próprio rei da Espanha já decidia sobre os assuntos de seu crescente império ultramarino de olho em um globo terrestre sobre sua mesa. O romance histórico reconta os perrengues épicos da primeira viagem de circum-navegação da Terra, aventura idealizada por Magalhães que se converteria na prova indisputável do formato esférico do mundo. O livro vem em boa hora não só por se festejarem neste mês os 500 anos da façanha. Sua leitura leva a indagar: o que Magalhães pensaria do “terraplanismo moderno”? Para esses napoleões de hospício das redes sociais (alguns deles até bem próximos a certos núcleos de poder no Brasil), a circum-navegação teria sido uma fake news náutica?
A primeira viagem em torno do globo foi fruto de um esforço de superação monumental que custaria muitas vidas — inclusive a de Magalhães. Ao zarpar do porto espanhol de Sanlúcar de Barrameda, em 10 de agosto de 1519, a expedição era composta de cinco caravelas que carregavam 265 homens. No seu retorno, em 6 de setembro de 1522, restavam apenas a nau Victoria e dezoito gatos-pingados. Quase tudo que se sabe sobre a viagem vem das anotações de Antonio Pigafetta, nobre italiano que pagou do próprio bolso para integrar-se à tripulação. Pigafetta é uma figura de realce no livro. Mas Barbera prefere narrar sua versão romanceada pelo ponto de vista de outro personagem real — e bem mais dúbio. O espanhol Juan Sebastián Elcano se alistou entre os homens de Magalhães para fugir de pendências com a Justiça, tomou parte em um motim contra o comandante (que mandou matar os principais rebeldes, mas o poupou) e completaria a circum-navegação no lugar do português — que foi morto em confronto com aborígines nas atuais ilhas Filipinas.

Na sua reconstituição, Barbera incorre em pecados típicos desse gênero de romance: abusa dos chavões e da pieguice ao louvar as glórias de Magalhães ou ao pintá-lo como herói tão obstinado quanto irascível. O relato de Elcano vai ganhando musculatura e interesse, contudo, à medida que se aprofundam as provações dos viajantes. Eles teriam topado com índios canibais na atual Baía de Guanabara e sobreviveram ao frio polar na até então virgem Terra do Fogo. Nos 120 dias de travessia do Oceano Pacífico, muitos sucumbiram à fome e às doenças. Diante da escassez total, os que restaram se viraram como piratas na costa asiática. Depois disso tudo, ainda tem gente que acredita no terraplanismo.
Publicado em VEJA de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647