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O fim do amor romântico, por Regina Navarro Lins

A busca exacerbada pela individualidade nos tempos atuais põe em xeque a ideia da fusão de almas e faz refletir sobre novos arranjos de relacionamento

Por Regina Navarro Lins*
Atualizado em 7 dez 2020, 16h15 - Publicado em 30 out 2020, 06h00

Não ache que a sua experiência pessoal é uma regra, muita gente tem mais sorte do que a senhora no relacionamento. Se a senhora nunca teve um amor de verdade, o azar é seu. Nunca foi amada, por isso fala mal do amor. É complexada porque nunca ninguém te quis. Que pessoa fria. É contra o amor.

Esses são alguns dos inúmeros ataques dirigidos a mim nas redes sociais quando critico o ideal do amor romântico. Imaginam que estou, na verdade, criticando o amor. E não se trata disso. A questão é que existe uma crença enganosa de que essa é a única forma possível de amar — um equívoco, na minha visão. O amor é uma construção social que, a cada período da história, se apresenta de uma maneira diferente. No caso do viés romântico, que fique claro: o problema não reside em mandar flores ou jantar à luz de velas, tudo muito bem-vindo. O que critico mesmo são as falsas expectativas alimentadas, baseadas na idealização da pessoa amada. Características de personalidade que ela não possui lhe são atribuídas. No fim, não se relaciona com a figura real, mas com aquela projetada de acordo com as nossas necessidades.

Qual é atualmente a propaganda mais difundida, poderosa e eficaz do mundo ocidental? Coca-Cola, Apple, Microsoft? Não. É justamente a do amor romântico. Ela chega até nós diariamente por meio de novelas, músicas, cinema, publicidade, com seu conjunto de crenças e valores que, mesmo inconscientemente, define como devemos sentir e agir em um relacionamento. Ocorre que estamos em meio a um processo de profunda mudança de mentalidade. A incessante busca da individualidade caracteriza a nossa época. A grande viagem do ser humano é para dentro de si mesmo. Cada um quer saber quais são suas possibilidades na vida e desenvolver seu potencial. E o amor romântico propõe o exato oposto disso. Ele prega que os dois se transformem em um só.

O tempo vai mostrando como essa forma de amor se desenrola. É difícil resistir à convivência diária do casamento. Nela, a excessiva intimidade torna obrigatório enxergar o parceiro como ele é e, assim, a idealização não tem mais como se sustentar. O desencanto é inevitável e aí vêm o tédio, o sofrimento e a sensação de ter sido enganado. Quando percebemos que o outro não é a personificação de nossas fantasias, nos ressentimos e, geralmente, o culpamos.

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“Muita gente acaba não se relacionando com a pessoa real, mas com a que projeta segundo suas necessidades”

O amor romântico apresenta atitudes e ideais próprios. Contém o conceito de que duas pessoas se transformam numa única, havendo complementação total entre elas, sem nada lhes faltar. E abarca ainda outras expec­tativas, que na prática não são realistas: a de que quem ama não sente desejo sexual por mais ninguém, de que o amado é a única fonte de interesse do outro e que não é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo. O resultado dessas crenças na vida a dois é que, com frequência, um acaba imaginando o outro como ele não é e espera dele coisas que não pode dar.

Após a Antiguidade, o cristianismo estabeleceu um hiato em que o amor se voltou para Deus. Ele só ressurgiu no século XII, com os trovadores, nobres pertencentes à corte da Provença, na França. O amor romântico mais tarde se irradiou por outras regiões e classes sociais da Europa medieval, transformando o comportamento de homens e mulheres. Ele ainda não podia fazer parte do casamento, que se dava por interesses econômicos e políticos. Só passou a ser uma opção no matrimônio no século XIX, depois da Revolução Industrial, quando se formou a família nuclear — pai, mãe e filhos. Como fenômeno de massa, aparece nos anos 1940. Todo mundo passou a desejar casar por amor, incentivado pelos filmes de Hollywood.

Entre os anseios contemporâneos, porém, preservar a individualidade começa a ser fundamental para a existência — e é nesse ponto que a ideia básica de fusão do amor romântico deixa de ser atraente, por trilhar exatamente o caminho inverso. Apesar de isso vir se exacerbando, não é de hoje que a humanidade repensa as diversas formas de amar. A partir dos anos 1960, o surgimento da pílula e os movimentos de contracultura — feminista, gay, hippie — levaram ao rompimento dos modelos tradicionais da relação afetiva. O sociólogo inglês Anthony Giddens chama de “transformação da intimidade” o fato de milhares de homens e mulheres ocidentais estarem tomando consciência da importância de desaprender e reaprender a amar.

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Sim, o amor romântico está saindo de cena e levando com ele sua principal característica: a exigência de exclusividade. Abre-se espaço assim para novos arranjos, como o das relações livres, sem compromisso com a fidelidade, do amor a três, do poliamor. Em meu livro Amor na Vitrine trato desse tema. Acredito que, daqui a algumas décadas, menos pessoas vão desejar se fechar numa relação a dois, optando por relações múltiplas. No Ocidente, cada vez mais se discute se o relacionamento monogamico é realmente uma fórmula melhor que a não monogamia. Aos que não acreditam nessa possibilidade, basta visitar os anos 1950 e 1960. Se naquele tempo alguém dissesse que um dia seria natural as moças não se casarem virgens, seria tachado de irresponsável. Afirmavam que a sociedade não estava pronta para tamanha reviravolta. A virgindade era precondição para o casamento. O mesmo ocorreria a respeito da separação de um casal, vista então como tragédia familiar. Quem poderia admitir que, décadas depois, se tornaria tão comum?

Há 47 anos atendo casais em meu consultório. Passei, de uns tempos para cá, a receber parceiros que põem à mesa novos conflitos, derivados do fato de que um deles gostaria de manter a relação não monogâmica. A outra parte muitas vezes se desespera com tal possibilidade, o que é compreensível em uma transição entre antigos e novos valores. Assistimos a grandes transformações e tudo indica que a aspiração por liberdade começa a predominar. A fantasia romântica da fusão de almas faz ambos perderem a própria identidade. As mudanças são evidentemente lentas e graduais, mas me parecem definitivas.

* Regina Navarro Lins é psicanalista e autora de vários livros, entre eles Amor na Vitrine

Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711

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