A interação entre as várias regiões do planeta ao longo dos séculos é uma saga fundamental. A humanidade como se conhece hoje foi moldada pelo contato entre povos que se uniram, negociaram, aliaram-se e separaram-se, guerrearam, dominaram uns aos outros, floresceram, sucumbiram ou renasceram. Surgida há 4 000 anos e célebre por ter sido percorrida pelo aventureiro veneziano Marco Polo entre os séculos XIII e XIV, a Rota da Seda é um exemplo do poder transformador do fluxo de produtos e ideias entre as civilizações. Dar conta de sua história é uma tarefa excruciante, mas iluminadora. O estudioso inglês Peter Frankopan, da Universidade de Oxford, se desincumbe dela com brilho num livro que acaba de sair no país: O Coração do Mundo.
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Frankopan é autor de vários tratados sobre este que é seu tema predileto: o encontro do Oriente com o Ocidente através da Rota da Seda. Ela foi uma das principais avenidas — se não a principal — para a interação entre as civilizações desde a Antiguidade. O historiador, aliás, prefere falar em “Rotas da Seda”, no plural — e por uma razão acertada. Muito mais que um único caminho que unia a China à Europa, elas constituíam uma malha complexa de comércio e relações humanas, e não apenas a trilha terrestre por onde se escoavam tecidos produzidos das fibras do casulo do bicho da seda, porcelana e especiarias para a Europa.
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O primeiro capítulo se debruça sobre seus primórdios, nas terras baixas de aluvião da Mesopotâmia — região onde fica o Iraque atual. O livro, no entanto, está longe de se esgotar na reconstituição do que foram as Rotas da Seda originais. Frankopan investiga os desdobramentos políticos, econômicos, comerciais e religiosos que os contatos entre as regiões ensejaram. E é a partir disso que propõe sua reflexão mais ousada: a defesa de que o desenvolvimento das civilizações — da economia à cultura, e do passado remoto aos dias de hoje — se dá por meio de conexões em rede que vão alterando o curso do progresso à medida que se fazem e se refazem. É por essa razão que Frankopan divide a abordagem em rotas temáticas, que vão das interações entre os credos religiosos à dinâmica da Guerra Fria.
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Boa parte do livro se devota a examinar a Rota da Seda original e a empreender um exercício futurológico fascinante sobre seu ressurgimento na era da alta tecnologia, no embalo da ascensão irresistível da China. Ao se deter sobre essa nova idade de ouro não apenas chinesa, mas do continente asiático, o autor investe contra preconceitos arraigados do Ocidente a respeito do Oriente. Um deles é com relação ao Islã, tema que domina de forma tão negativa o imaginário ocidental. No capítulo “A Rota para o Céu”, que trata das Cruzadas para a libertação de Jerusalém, no século XIII, Frankopan cita que “os recém-chegados ficavam incrédulos ao ver que o comércio com os ‘infiéis’ acontecia em bases cotidianas, e levavam um tempo até perceber que na prática as coisas não eram ‘tão preto no branco’ como haviam sido pintadas na Europa”. Atesta-se, assim, não só a resiliência da visão maniqueísta e xenófoba pela qual o Islã era percebido (e é até hoje, diga-se). Mesmo nos tempos acirrados das Cruzadas, o contato direto entre os povos podia funcionar como antídoto à desconfiança mútua.
A certa altura, Frankopan passa a tratar da aventura do colonialismo europeu, que se iniciou com a descoberta das Américas, em 1492, e levou “a Europa ao centro do palco”, anunciando a primeira correção definitiva da cartografia do poder mundial. A partir daí, Frankopan se volta a temas mais próximos da realidade atual. Até chegar, por fim, à emergência da Nova Rota da Seda. A China vem desenvolvendo desde 2013 o projeto “One Belt, One Road Initiative”, apoiado nos trilhões de dólares de reservas cambiais que possui. O objetivo da iniciativa é resgatar e ampliar o traçado da antiga Rota da Seda, reunificando economicamente a Ásia à Europa e à África, a fim de transformar a economia chinesa na mola propulsora da geoeconomia pós-industrial. “Enquanto ficamos tentando saber de onde poderá vir a próxima ameaça, ou a melhor maneira de lidar com o extremismo religioso (…), vão sendo urdidas em silêncio múltiplas redes e conexões ao longo da espinha dorsal da Ásia”, analisa Frankopan. Percorrer a Rota da Seda nunca foi tão enriquecedor.
Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668
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