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Novo ‘Jogos Vorazes’ investiga a natureza humana pela ótica do vilão

Um título recém-lançado retoma a sedutora franquia, distopia juvenil que não subestima o leitor

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h10 - Publicado em 26 jun 2020, 06h00
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  • Em um futuro tenebroso, o fictício país ditatorial Panem, no território onde antes ficavam os Estados Unidos, é comandado por um presidente sádico. Doze distritos — em sua maioria, miseráveis — proveem insumos para a abastada Capital, cidade que anualmente sedia um reality show no qual 24 adolescentes são obrigados a lutar em uma arena sedenta por sangue. Apenas um deles sai vivo do evento televisionado. A trama central de Jogos Vorazes é tão assustadora quanto os piores pesadelos criados pelo inglês George Orwell. Mas não tem nada de repulsiva — muito pelo contrário: a trilogia escrita pela americana Suzanne Collins entre 2008 e 2010 soma incríveis 100 milhões de livros vendidos, e os quatro filmes derivados dela faturaram 2,9 bilhões de dólares em bilheteria. Uma década após seu fim, a franquia continua a render frutos: um novo livro, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, ambientado 64 anos antes dos eventos da popular trilogia, acaba de chegar às livrarias — e já há uma adaptação no forno em Hollywood.

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    A CANTIGA DOS PÁSSAROS E DAS SERPENTES, de Suzanne Collins (tradução de Regiane Winarski; Rocco; 576 páginas; 59,90 reais e 32,90 reais na versão digital) (./.)

    A heroína original, a durona Katniss (interpretada por Jennifer Lawrence), entrega o posto de protagonista ao terrível presidente Coriolanus Snow (que, nas histórias anteriores, era um homem maduro vivido com brilho por Donald Sutherland). O livro imagina a juventude de Snow, então um polido e ambicioso rapaz de 18 anos que tenta manter as aparências da riqueza e prestígio que outrora acompanhavam seu sobrenome. A decadência da família começou com a rebelião dos distritos, que atacaram a Capital, mataram seu pai e dilapidaram a bonança dos tempos de paz — pela óptica unilateral do que ele crê ser a paz. Essa guerra daria origem aos Jogos Vorazes: o ressentimento pelo conflito fará Snow no futuro impor o selvagem evento como castigo aos rebeldes.

    Ao iluminar o vilão, a autora repete uma fórmula eficaz na ficção pop — a saga Star Wars é um exemplo disso, ao mostrar o jovem Darth Vader sendo seduzido pelo lado sombrio da Força. São roteiros que tomam emprestada da filosofia uma velha dúvida sobre a natureza humana: seria o homem mau em sua origem ou um produto do meio em que vive? A questão ganha cores peculiares na prosa de Suzanne, que envolve os leitores com criatividade e profundidade, características que a elevam a um patamar de qualidade alcançado por poucos escritores juvenis, como o irlandês C.S. Lewis (1898-1963) e seu filosófico As Crônicas de Nárnia, e a inglesa J.K. Rowling, com a saga do bruxo Harry Potter. Assim como os dois autores, Suzanne ousa tocar em temas espinhosos sem subestimar os jovens. Em seus livros, romances pueris e ansiedades típicas da adolescência se mesclam à abordagem bem informada de temas como autoritarismo, violência e desumanização, tudo embalado com referências que vão da mitologia grega à teoria política (confira o quadro). Essas pílulas são expostas não raro com notável sutileza — é o caso do significado oculto do nome do país Panem, alusão ao panem et circenses, a célebre política do pão e circo do Império Romano. Em rara entrevista, a reclusa autora já declarou: “Não escrevo sobre adolescentes. Escrevo sobre guerra para adolescentes”.

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    Avessa à fama, Suzanne revela pouco sobre sua vida. Antes de ser um fenômeno, escrevia programas de TV e livros infantis. Por meio de Jogos Vorazes, é possível inferir que se trata de uma pessoa crítica à dita “cultura do espetáculo”, como se nota na ideia do cruel reality show que dá nome à franquia. Não era esperado que, aos 57 anos, ela voltasse a beber do sucesso passado (embora, claro, seja absolutamente humana a tentação de lucrar com uma obra tão bem-sucedida). Mas ela o faz com dignidade. Para que o leitor se interesse pelo jovem Snow, Suzanne realça o charme do vilão sem ocultar sua índole egoísta. Ao redor dele, supremacistas tratam os distritos como “escória”. Duas bússolas morais puxam Snow e o leitor para o que é correto: Sejanus, amigo contrário aos Jogos, e Lucy Gray Baird, oriunda do paupérrimo Distrito 12 e a quem Snow é incumbido de ser mentor. Artista circense, a jovem adiciona cor ao livro e enfeitiça o futuro ditador. Ainda que a circunstância seja outra, a força que move Jogos Vorazes continua a mesma: a fome de viver.

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    Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693

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