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Adriana Calcanhoto: Nos dois lados do Atlântico

Cantora passa até 5 meses por ano estudando arqueologia em Portugal, sem descuidar da carreira artística, reforçada por 'Margem', seu novo disco

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 out 2019, 17h47 - Publicado em 7 jun 2019, 07h00

Uma amiga de Adriana Calcanhotto um dia a definiu com uma frase meio enigmática: “São muitos os apelos”. Queria dizer que a cantora e compositora não se contenta só com a música, ainda que, aos 53 anos, tenha construído uma das carreiras mais impecáveis de sua geração. Em A Mulher do Pau Brasil, misto de show e manifesto com que a artista gaúcha percorreu o Brasil no ano passado e nos primeiros meses de 2019, misturam-se vários “apelos”: música, artes plásticas, literatura. Mais inusitada, na trajetória de uma cantora consagrada no rádio e nas novelas da Globo, é a virada acadêmica de Adriana. Há quatro anos, ela se tornou embaixadora da tradicionalíssima Universidade de Coimbra, em Portugal, e desde 2017 dá aulas na instituição. Hoje a compositora de Mentiras estuda arqueologia em Coimbra, e até anda enfronhada em um projeto em Idanha-a-Velha, aldeia portuguesa de cinquenta habitantes que guarda um rico passado romano e visigótico. “A história que Idanha tem para contar está captando a atenção da Adriana. No ano passado, ela teve a oportunidade, durante uma manhã, de participar nas escavações arqueológicas que estamos a dirigir lá”, diz o professor Pedro Carvalho, da Faculdade de Letras de Coimbra. Adriana confirma a nova paixão: “Sou muito interessada pelo legado romano em Portugal: a tecnologia do vinho, a arquitetura, o saneamento, a tolerância religiosa”. O “apelo” primordial na vida de Adriana, porém, ainda e sempre é a música popular, como atesta o ótimo Margem, seu primeiro álbum de inéditas em oito anos, que chega nesta semana às lojas e plataformas virtuais.

Margem é o capítulo final de uma “trilogia marinha” que começou com Marítimo, de 1988, e que teve seu prosseguimento em Maré, lançado uma década depois. O novo disco traz duas canções que ficaram de fora do trabalho de 2008: O Príncipe de Marés, de Péricles Cavalcanti (em delicioso arranjo árabe), e Os Ilhéus, poema de Antonio Cicero musicado por José Miguel Wisnik. É um trabalho diversificado: canções de matriz bossa-novista (caso da faixa-título, cujo clipe traz Adriana tosando os cabelos) casam com Lá Lá Lá, de acento africano. Talvez é um funk em 150 BPM, levada atual dos bailes cariocas. “É uma batida sensacional. Não me identifico com as letras que tenho ouvido, mas creio que um dia vai aparecer poesia no funk”, prevê a otimista cantora. Margem é um disco de mensagem ecológica — o kit promocional inclui canudo reutilizável —, como se evidencia em Ogunté, pontuada por nervosas batidas eletrônicas e canto rapeado: “Crianças encalhadas na costa de Lesbos/ Pacotes de cruzeiros pelas ilhas gregas/ O plástico do mundo no peixe da ceia/ O que será que cantam tuas baleias?”. A turnê do novo disco deve começar em 23 de agosto, em Belo Horizonte.

Adriana deu início à sua carreira discográfica com Enguiço, de 1990, trabalho que nunca esteve à altura de suas qualidades como compositora e intérprete. O excesso de releituras — de Lupicínio Rodrigues a Titãs — a jogou na vala das “cantoras ecléticas” tão comuns nos anos 80 e 90. Em Senhas, de 1992, Adriana se firmou como compositora, talento que depois seria validado por grandes intérpretes da MPB. Maria Bethânia, uma das que recorrem às criações de Adriana, também lhe deu o norte de como gerir a carreira. “Ela é uma bússola, tem um nível único de rigor”, derrete-se Adriana. Duas canções de Maré já foram gravadas por Bethânia: Tua e Era pra Ser. Outra figura fundamental na trajetória — artística e afetiva — de Adriana é Susana de Moraes, filha do poe­ta Vinicius de Moraes, com quem a compositora viveu por 26 anos, até Susana sucumbir a um câncer, em 2015. “Ela foi muito generosa comigo. Faz muita falta”, diz.

VIDA ACADÊMICA –  Na Universidade de Coimbra: aulas sobre música e poesia e estudo do legado romano em Portugal (Paulo Spranger/Global Imagens/.)

A obviedade nunca fez parte do repertório de Adriana. Um sucesso nas paradas — e ela teve vários — não precisa ser necessariamente sucedido por outra canção semelhante. Às vezes, uma canção de apelo popular ganha um tratamento de ourives na sua interpretação. Devolva-me, sucesso de Leno e Lilian, uma esquecida dupla da Jovem Guarda, e Outra Vez, de Isolda, foram algumas dessas canções, escolhidas mais por afinidade do que por qualquer cálculo de mercado. “Maria Bethânia sempre diz: ‘Procure saber se a canção gosta de você de volta’”, diz Adriana. A inquietude que marca sua obra a transformou em ponto de referência para jovens intérpretes e autores, o que é documentado em Nada Ficou no Lugar, disco de composições de Adriana na voz de artistas de gerações posteriores como Letrux, Mahmundi e Alice Caymmi. “Ela faz jus a um Brasil moderno, confundindo todas as fronteiras entre as chamadas alta e baixa culturas. Sua integridade artística dá lições sobre a potência da canção popular como divulgadora de grandes obras poéticas”, derrete-se Arthur Nogueira, que colaborou com o disco-homenagem.

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Em sua investida na música infantil, em 2004, a cantora mostrou seu lado teatral: criou uma personagem, Adriana Partimpim, para levar às crianças um repertório que incluía Baden Powell, Villa-Lobos e Arnaldo Antunes. “Às vezes deparo com grandalhões que dizem que escutaram muito o Partimpim quando eram crianças”, diverte-se. O baixista Dé Palmeira, diretor musical do espetáculo, é mais um que rasga elogios a Adriana e “à maneira peculiar com que ela olha o mundo”.

Adriana fica de quatro a cinco meses em Portugal. Seu fascínio atual são os resquícios do passado (em particular, do Império Romano) que encontra nos cantos remotos do país: “A casa das pessoas em Idanha-a-Velha pode ter uma pedra da torre templária, uma pedra romana com inscrição funerária e um vasinho em cima. A história faz parte do dia a dia das pessoas”. Ela anda estudando a poesia e o cancioneiro antigo e medieval. Um de seus projetos futuros é transportar esse repertório para o universo da MPB. Os cursos que ela dá em Coimbra dizem respeito sobretudo à relação entre poesia e letra de música. Em 2017, VEJA acompanhou uma de suas aulas no Teatro Académico de Gil Vicente. É um espaço moderno, mas próximo à parte histórica da instituição, com capacidade para 400 lugares. Um grande público se aglomerava na calçada esperando a abertura das portas do local. Quando a instituição liberou ingressos para a entrada, eles rapidamente se esgotaram. Um festival de sotaques se espalhava pela fila — alguns tinham a batida marcante do cidadão português, e as falas brasileiras iam da cadência nordestina à musicalidade do sul — Coimbra é a universidade com o maior número de brasileiros fora do Brasil. A aula começou com palmas. A cantora de fala macia abriu o dia dizendo que por muito tempo resistira à vocação docente que corria em sua família, constituída de vários professores. Durante três horas, ela apresentou comparações entre técnicas de poesia e de letras de música. Em meio às explicações, números musicais ao violão fizeram a alegria dos presentes à aula-­show. “Amo Portugal, mas não troco meu Brasil por nada”, ela declarou na época. Os apelos são vários e estão dos dois lados do Atlântico.

Com reportagem de Raquel Carneiro

Publicado em VEJA de 12 de junho de 2019, edição nº 2638

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