Completei há três semanas 80 anos de idade trabalhando todos os dias e me sentindo realizada. A Marlene, minha personagem em A Dona do Pedaço, a novela das 9 da Globo, é uma senhora que tem desejos, gosta de dançar e namora. Há pessoas que me perguntam sobre o privilégio de fazer uma mulher assim, com vida ativa em plena terceira idade, e eu penso que só podem estar desconectadas da realidade. Já foram a um salão de baile? Esses lugares estão sempre cheios. A mesma coisa vale para as academias, lotadas de velhinhos pegando peso e fazendo exercícios. Portanto, ninguém deveria se chocar ao ver uma senhora namorando na ficção. Isso não tem idade. É um retrato do que já acontece. Hoje, mulheres de 60 e 70 estão maravilhosas, superativas. Minha avó e minha mãe morreram na cama, sem se mexer por causa de artrose. Se hoje em dia algo começa a doer, o médico já manda a pessoa se movimentar. Tem coisa melhor do que dançar? Eu não fico parada quando escuto um ritmo. Agora, uma coisa eu digo: namorar é maravilhoso, mas casar é um horror. Tive dois casamentos, ambos não deram certo. O namoro concentra os melhores momentos, o frescor e certa distância. Afinal, os desentendimentos se dão dentro de casa. Com a convivência no dia a dia, chegam as discussões, o excesso de intimidade… Ninguém merece. Agora, é claro que as coisas mudaram para melhor com os anos. Minha mãe, aos 39, era considerada uma senhora.
Estou solteira neste momento, minha rotina se divide entre trabalhar e ir ao cinema e teatro. Infelizmente, os bandidos tomaram conta do Rio de Janeiro e isso tem mudado os hábitos de uma sociedade amedrontada. A programação artística passou a ter horários antecipados, e muita gente deixou de sair de casa. É triste. Eu vivo a minha vida. Quando saio, recebo muito amor de fãs. Veja só, além de aparecer em A Dona do Pedaço, estou no ar com a reexibição da novela O Cravo e a Rosa, no canal Viva, e com a série infantil Detetives do Prédio Azul, pelo canal Gloob. Então em praça de alimentação de shopping as crianças me apontam e pedem para conversar e tirar foto. Eu adoro. Aliás, a renovação de público infantil é uma constante, afinal eu vivi a Dona Benta em o Sítio do Picapau Amarelo.
Trabalhar, para mim, é uma diversão, uma festa. Sinto estar indo a um parque quando vou para o estúdio. Rir é uma terapia. Por isso tenho visto todo este movimento de censura com receio. Começou no teatro, impedindo peças de entrar em cartaz, e me pergunto se o próximo passo não será com as produções de TV. Eu comecei minha carreira nos anos 60 no teatro, na mesma companhia de Fernanda Montenegro. Houve uma cena em que minha personagem na montagem de Amanhã, Amélia, de Manhã, de Leilah Assumpção, em 1973, diria a frase “rolando no feno”. Os censores mandaram cortar esse trecho porque remeteria a conteúdo sexual. Só que não haveria feno nem eu rolaria em nada, era uma simples frase. Também tive falas cortadas na TV. Certa vez, fui proibida de dizer que “iria comer um brigadeiro” e que estava “vermelha de raiva”. As artes precisam ser livres, os autores devem ter o direito de escrever sobre o que quiserem. Não quero que a geração atual passe pelo que a minha passou. Falando sobre os mais jovens, não consigo entender o fascínio pelo celular. Posso contar uma coisa? Até hoje não sei acertar o botão “play” do DVD da minha casa. Celular, para mim, é apenas para falar. Não tenho WhatsApp. Os atores da nova geração pegam o roteiro por mensagem de telefone. Eu prefiro recebê-lo impresso para poder decorar no papel. Sei que muita gente faz dinheiro com redes sociais, mas não consigo entender essa coisa de expor a vida para todo mundo. Tô fora!
Depoimento dado a João Batista Jr.
Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660