Após tocar a última nota em um concerto no Rio de Janeiro, Nelson Freire, um dos mais talentosos pianistas do mundo, se levanta enquanto é ovacionado por uma plateia mesmerizada. Ele agradece ao público e segue para a coxia. As palmas não cessam. Ao fundo, gritos de “bravo”, “bravíssimo” e “maravilha”. Freire retorna ao palco para aceitar, pela segunda vez, os aplausos. Insaciáveis, as palmas ficam ainda mais estridentes — e ele, claro, repete a cena. O entra e sai do palco acontece sete vezes durante cinco minutos até que, finalmente, Freire se senta ao piano para o bis. O momento de causar arrepios, retratado no documentário Nelson Freire (2003), de João Moreira Salles, não é exclusividade desse show: ovacionado de forma fervorosa ao redor do mundo, o artista recebia do público o atestado de seu talento e relevância no universo da música clássica. A popularidade e o prestígio andavam juntos. Freire foi o único pianista brasileiro a integrar a histórica coletânea Great Pianists of the 20th Century (Grandes Pianistas do Século 20), publicada em 1999, com 72 músicos.
Nascido em 1944, em Boa Esperança, Minas Gerais, Nelson Freire despertou para a música precocemente. Aos 3 anos, já impressionava os professores de sua cidade natal, que disseram aos seus pais que nada mais tinham para ensinar a ele, recomendando uma mudança para o Rio de Janeiro. Na então capital da República, Freire teve aulas com a pianista Nise Obino (1918-1995), por quem nutriu um amor de mãe. Na imprensa carioca da época, o garoto era retratado como prodígio e celebrado por grandes músicos, entre eles a pianista Guiomar Novaes (1894-1979), a quem ele admirava.
Durante a carreira, Freire brigou contra a timidez apresentando-se em todos os continentes e tocando com as principais orquestras do mundo. Com jeito contido de teclar, sem afetações estilísticas, ele se notabilizou por suas interpretações de Beethoven, Chopin, Schumann, Debussy, Rachmaninoff e Villa-Lobos. O pianista não gostava quando o chamavam de celebridade. “Fazer música não é uma competição. Quando te põem acima da música, aí já distorce”, dizia. Discreto na vida pessoal, Freire chegou a afirmar que sua alma gêmea era a pianista argentina Martha Argerich, parceira musical com quem ele manteve uma amizade desde os 15 anos.
Em 2019, ele caiu no calçadão da Barra da Tijuca e fraturou o ombro, sendo submetido a uma cirurgia. Desde então, parou de tocar e reclamava de dores quando se sentava ao piano. Nelson Freire morreu no dia 1º de novembro, aos 77 anos, com uma concussão cerebral após sofrer uma queda em sua casa, no Rio de Janeiro.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763