O italiano Antonio Cassese contava que, quando presidiu o julgamento no Tribunal de Haia, nos anos 1990, dos escabrosos crimes cometidos na divisão do território da antiga Iugoslávia, adquiriu um hábito incomum: entre as sessões, escapava para o museu Mauritshuis, no centro da cidade, em busca de alguns minutos de paz na companhia dos quadros de Johannes Vermeer. “É como se uma luz interior tranquilizante exalasse de suas obras”, explica Jorgen Wadum, professor de restauração da Universidade de Amsterdã, descrevendo o dom especial do pintor que encarna, ao lado de Rembrandt, a Era de Ouro das artes holandesas. Dono de um talento incomum, Vermeer deixou para a posteridade um tão reduzido quanto precioso conjunto de cerca de 35 obras espalhadas por museus e colecionadores mundo afora. De 10 de fevereiro a 4 de junho, o imponente Rijksmuseum de Amsterdã fará história ao reunir 28 delas na mais completa exposição de Vermeer já realizada — o recorde anterior era da National Gallery of Art, de Nova York, que exibiu 23 pinturas do mestre em 1995.
Ao contrário do contemporâneo Rembrandt, celebrado em vida e figura central de uma oficina prolífica, Vermeer — astro maior da chamada Escola de Delft, cidade onde morou a vida toda — produziu quadros intimistas no silêncio de seu estúdio, limitando-se a duas a três pinturas por ano. Quase nada se sabe de sua infância além de que nasceu em 1632 em uma família calvinista de classe média. O pai aliava a profissão de tecelão com a de negociante de arte e supõe-se que esteja aí a origem da vocação e do aprendizado de Vermeer. Os poucos registros apontam seu casamento com Catharina Bolnes, de rica família católica, em 1653, o mesmo ano em que inaugurou seu estúdio e passou a trabalhar para um punhado de colecionadores, como Pieter van Ruijven, que adquiriu a maioria de suas primeiras pinturas. Vermeer vendia bem, mas seu sucesso permaneceu circunscrito a Delft. A crise econômica a partir de 1672 — o chamado rampjaar (ano do desastre) — o mergulhou na miséria e ele morreu arruinado.
A notoriedade mais ampla só viria em 1860, impulsionada pelo crítico de arte francês Théophile Thoré, que descobriu e divulgou o quadro Vista de Delft e reinseriu o pintor, apelidado de “esfinge de Delft”, nos círculos mais influentes do mundo das artes. Agora, em paralelo à exposição, curadores e cientistas do Rijksmuseum analisaram pela primeira vez suas obras usando raios-X macro, tecnologia de autenticação que revela elementos escondidos. Os resultados da pesquisa serão publicados em 2025, mas alguns dados preliminares — e surpreendentes — já são conhecidos. No quadro A Leiteira foram detectados dois objetos apagados, um porta-jarro e um braseiro. Na mesma pintura, os scanners mostram uma linha preta grossa feita às pressas para delinear a cena, oposta à apregoada extrema precisão de Vermeer. “Na verdade, ele tinha uma maneira de pintar ousada e livre”, afirma Arthur Wheelock, curador da National Gallery of Art.
Com perfeito domínio dos claros e escuros, Vermeer foi capaz de, com um toque espesso de chumbo branco, reproduzir o brilho de um reflexo em sua tela mais conhecida, Moça com Brinco de Pérola, a “Monalisa holandesa”. Em A Aula de Piano, a luz que entra de cima, pela janela, é colorida com lápis-lazúli, para representar os tons do céu, enquanto a que entra por baixo tem a tonalidade ocre dos paralelepípedos da rua. “Vermeer não pintava com tinta a óleo. Ele pintava com luz”, resume Wadum.
Parte do apelo do grande mestre está nas cenas domésticas e cotidianas, de homens em seus ofícios e mulheres em afazeres domésticos, da corrente conhecida como pintura de gênero, que floresceu na primeira metade do século XVII na Holanda, um período de relativa estabilidade e prosperidade. “Essas pinturas celebravam os prazeres aspiracionais do lar”, diz a curadora Marjorie Wiseman, para quem Vermeer conseguia “transformar uma cozinha no interior da Capela Sistina”. Uma empregada entrega uma carta, uma renda é costurada, uma jarra é derramada — Vermeer captura momentos parados no tempo, criando uma sensação de serenidade que serve de bálsamo para momentos turbulentos. Nada mais apropriado para os dias de hoje.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824