Na gaveta por anos, o primeiro romance de Margaret Atwood, A Mulher Comestível, foi lançado finalmente em 1969. Na trama, uma jovem fica noiva e para de comer. Aos poucos, partes de seu corpo somem — numa alegoria do apagamento feminino ao encarar o casamento na época. Margaret fez sua primeira e malsucedida sessão de autógrafos em um shopping da cidade de Edmonton, no Canadá: o evento se deu próximo a uma loja de roupas masculinas. “O título assustou muitos homens que andavam ali para comprar suas cuecas. Fugiram em bando. Vendi dois exemplares”, narra a autora com seu humor irônico no livro de ensaios Questões Incendiárias, recém-lançado no Brasil.
Tido como um fiasco, A Mulher Comestível acabou caindo nas graças das feministas, como um manifesto feito sob medida para a segunda onda do movimento, que floresceu naquela década. Não fora essa a intenção da autora, mas isso já não importava: ao longo de uma carreira prolífica, Margaret, hoje aos 84 anos, recebeu reconhecimento tardio por obras que, antes lidas como fantasias improváveis, se revelaram alertas assustadoramente possíveis — sendo o incensado O Conto da Aia, de 1985, o maior exemplo de seu faro para os perigos que rondam as mulheres.
Em Questões Incendiárias, ela reflete sobre a fama de “profetisa” e recusa a alcunha: afinal, prever o futuro, diz a própria, é impossível — apesar de seu inusitado interesse por cartas de tarô. O que é possível (e plausível) é mergulhar nas inquietudes do presente — e apontar para futuros dos quais a humanidade deveria se desviar. Sendo assim, Margaret prefere outro apelido: o de “vovozinha bruxa assustadora”. Terceira coletânea de ensaios da canadense, o livro é exemplo desse olhar sobre o presente, com reflexões sobre o século XXI escritas por ela entre 2004 e 2021. Com esse volume, somado aos dois anteriores, Second Words, que vai de 1960 até 1982, e Alvos em Movimento, de 1983 a 2004, Margaret cobre um total de sessenta anos de história. Tempo suficiente para dizer que já viu de tudo um pouco.
Não à toa, ela mostra desassombro com a chegada da pandemia de covid-19. Nascida em 1939, Margaret cresceu cercada pelo medo dos “germes” que matavam crianças, como difteria e febre escarlatina, antes do acesso a vacinas e antibióticos. Filha de cientistas, soube desde cedo as implicações de uma crise climática na proliferação de doenças — conhecimento aplicado na trilogia MaddAddão, iniciada em 2003 e encerrada em 2013. A obra foi redescoberta em 2020, por retratar um mundo devastado por uma pandemia e com humanos sobreviventes feitos em laboratório. Margaret não previu o futuro — mas alertou sobre ele. O mesmo fez em O Conto da Aia, adaptado na série de TV The Handmaid’s Tale: a trama sobre mulheres escravizadas por um governo fundamentalista nasceu da vivência da autora em viagens do Irã ao Leste Europeu, onde viu quão delicada é a teia que segura os direitos femininos. A obra virou símbolo contra a guinada à extrema direita que elegeu Donald Trump.
Para além da própria escrita, Margaret vai do erudito ao pop quando analisa autores como Shakespeare, Kafka e até Stephen King. Num momento saboroso, revela um gosto adquirido com a velhice: o de palpitar na vida alheia. É sempre prudente ouvir o que a bruxa moderna tem a dizer.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892