Diante de uma enfermeira, Mafalda e seus amigos arregaçam as mangas enquanto a pequena garota de cabelos volumosos pede: “viemos nos vacinar contra o despotismo”. Em outra analogia que envolve saúde e política, a menina coloca na cama um globo terrestre, que estaria enfermo. “Vou checar o noticiário para saber se o paciente está melhor”. Ao que ela retorna com o diagnóstico negativo, e canta uma canção para a versão em miniatura da Terra, pedindo que ela sare hoje ou amanhã.
Ler em 2020 as tiras protagonizadas pela indefectível Mafalda, assinadas por seu criador, o cartunista argentino Quino, entre 1964 e 1973, provoca uma sensação de déjà-vu. Com mais de cinquenta anos, a personagem contestadora marcou época ao ganhar relevância em uma América Latina que observava a avalanche de governos autoritários para se tornar, hoje, um símbolo da história e de erros que não deveriam ser repetidos.
Em outro quadrinho deveras atual, por exemplo, Mafalda acaricia o globo terrestre – personagem comum de muitas de suas histórias – e tenta acalmá-lo, dizendo: “Não se preocupe, neste mesmo momento há milhares de pessoas estudando seus problemas: superpopulação, fome, contaminação, racismo, armamentismo, violência”. Em seguida, ela diz: “Sim, já sei, existem mais ‘problemólogos’ do que ‘solucionólogos’, mas fazer o que?”
Estas tiras podem ser encontradas no livro Toda Mafalda, de 1991, que reúne as reflexões da personagem sob a pena de Quino. Inicialmente, a jovem protagonista observa a chegada dos televisores aos lares argentinos e seu impacto na vida cotidiana; com o tempo se solta e faz comentários irônicos sobre o poderio americano e sua influência sobre Brasil, Argentina e colegas da América do Sul; aconselha a Lua a tomar cuidado com a chegada dos seres humanos; faz trocadilhos jocosos com esquerda e direita, comunismo e capitalismo; e ainda acha tempo para puxar certo empoderamento feminino. Em dezembro, aliás, a editora Martins Fontes lança a coletânea Mafalda Feminino Singular, que reúne tiras com a personagem de afiado tom feminista.
Não à toa, Mafalda se mostra uma figura incontornável da história latino-americana. Com a morte de seu criador, nesta quarta-feira, 30, a esperança é que Mafalda, um dia, se resigne ao papel de testemunha ocular da história, e não mais de ativista que, há décadas, repete a mesma mensagem: o direito à liberdade é inegociável.