Alguns termos entraram sem pedir licença no vocabulário imposto por 2020. Lockdown, Zoom e lives, por exemplo, eram meros desconhecidos até a pandemia mudar o mundo e adicionar um “novo normal” ao palavreado. Confinado em casa com a família durante a quarentena, o arquiteto carioca Miguel Pinto Guimarães, 46 anos, conversador e “da rua”, como o próprio diz, se viu obrigado a se adequar à nova realidade. Não esperava, contudo, extrair do período um fruto saboroso. Amigo de nomes para lá de ilustres, do cantor Gilberto Gil à atriz Regina Casé, passando por Marina Silva e Luciano Huck, Guimarães foi em busca de boas conversas como alento em tempos de incertezas. Entre reflexões sobre o isolamento, a política, o futuro das artes e das cidades, e seu papel nisso tudo, o arquiteto achou justo tornar públicas as divagações. Embarcou, então, na onda das famigeradas lives e fez das redes sociais, acostumadas à superficialidade, um local de aprofundamento e de novas ideias. O projeto foi vertido no livro Quarenta e Quatro em Quarentena, que reúne transcrições desses bate-papos inspiradores realizados entre março e setembro no Instagram.
Ao levar a troca pessoal entre amigos para as lives, Guimarães ampliou sua já invejável agenda. A lista de convidados vai do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e de economistas como André Lara Resende ao comediante Marcelo Adnet e à ativista Sonia Guajajara. “Meu algoritmo é misturado. Tentei trazer vozes variadas para a mesa”, conta o arquiteto. As discussões tratam de temas comuns de um país mergulhado em diversas crises. A importância da cultura para a sociedade, a sustentabilidade como propulsora de riqueza financeira, a ideia de um capitalismo mais humano e a democratização da arquitetura são motores dos diálogos. Bastidores curiosos da política e da fama dão um temperinho extra ao cardápio.
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Gilberto Gil fala do pai médico e medita sobre a fé (“acredito na condição humana”) e sobre os perigos da tecnologia (“toda obra da humanidade é eivada pelo bem e pelo mal”). Huck revela que seria arquiteto se não fosse apresentador de TV, e defende uma ação maior da sociedade civil no combate à desigualdade (“A solidariedade tem de ser mais contagiosa que o vírus”). Ao ser questionado sobre ambições presidenciais, o apresentador desconversa. Já Fernando Henrique relembra o início da carreira política e a dificuldade de estabelecer um diálogo com o PT durante seu governo. Ele ressalta, ainda, o perigo da cultura do personalismo, que eleva pessoas ao status de salvadoras da pátria, conduzindo ao autoritarismo. “Os partidos são fragmentados e as pessoas ouvem pessoas, líderes”, alerta.
Guimarães gostou da experiência: planeja dois outros livros, voltados para a cultura e o samba. O universo das lives e do Zoom, porém, não substituiu o desejo de encontros cara a cara. “Espero a vacina. Pode vir do Paraguai que eu vou tomar”, brinca, ansioso por uma boa conversa no bar.
Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718
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