Leonardo Gonçalves critica política nas igrejas: ‘Limitam o acesso a Deus’
Cantor gospel falou a VEJA sobre a canção de protesto 'Messias' e suas críticas ao apoio evangélico em favor do presidente Jair Bolsonaro
Nome popular na música gospel, o cantor Leonardo Gonçalves se viu na contramão de muitos de seus colegas. Crítico ao governo de Jair Bolsonaro, Gonçalves se uniu a outros importantes nomes do gênero para lançar a música Messias. A canção de protesto critica o uso da religião para fins políticos, com a participação de Kleber Lucas, Dona Kelly, Clóvis, Sarah Renata, Tiago Arrais, João Carlos Jr., e o rapper MN NC. Gonçalves falou a VEJA sobre o projeto e a retaliação sofrida no meio. “O cristianismo é plural. Podemos não ser a maioria, mas existimos e vamos nos posicionar”, disse. Confira os principais trechos da entrevista:
Ser um cantor do meio gospel e se posicionar contra Jair Bolsonaro é uma decisão complicada, pois afasta parte do público. Por que decidiu falar de forma tão enfática agora? Realmente não é fácil, mas eu preciso fazer um pequeno adendo. Eu não estou bem me posicionando contra o Bolsonaro, embora eu tenha muitas críticas a fazer contra o Presidente da República também. Eu tenho me posicionado contra o que chamo de instrumentalização da religião para fins políticos e a instrumentalização da política brasileira para fins religiosos.
Pode explicar melhor? É a tentativa de quebrar a laicidade do Estado e a consciência pessoal de voto. O cristianismo sempre foi plural, diverso. E sempre houve tentativas de hegemonizá-lo, de limitar o acesso a Deus, controlar as formas e as maneiras de quem pode se achegar a Deus. Na medida em que a igreja, ou alguns cristãos, ou pessoas a mando de instituições religiosas têm tomado o poder público, através da bancada evangélica, por exemplo, mais e mais esse evangelicalismo quer se impor porque é um cabo eleitoral poderoso. Se fala muito no voto evangélico. Não existe voto evangélico. Existe na mente de alguns que querem controlar todos os evangélicos para votarem de uma maneira, para que eles possam ter cada vez mais espaço no poder público e no âmbito público.
Como surgiu a parceria para fazer a música Messias? Eu me posiciono politicamente pelo menos de quatro em quatro anos, em todas as eleições federais. Apoiei Marina Silva em 2010, 2014 e 2018. Mas a decepção em 2018, dessa tomada do poder público através de uma grande parcela dos evangélicos, para mim foi uma experiência muito solitária. Claro que eu tinha algumas pessoas que estavam sentindo essa mesma dor que eu senti quando o presidente Jair Bolsonaro se elegeu usando a ferramenta do pânico moral. Em 2018, foi a mamadeira de piroca e a ideologia de gênero. São coisas criadas e que não existem, feitas apenas para dar medo nas pessoas. E o medo é uma ferramenta poderosa. A partir de 2020, o sentimento de angústia em relação ao que a religião estava se tornando para fins políticos aumentou. Comecei a encontrar e a me unir com outras pessoas indignadas como eu, foi aí o cerne dessa canção. A gente nem pensava em se tornar o que talvez hoje possa ser denominado resistência.
Qual o objetivo da canção? Nosso principal objetivo é mostrar que há diversidade no cristianismo. Você não precisa votar de um certo modo, você não é obrigado a votar em candidatos X ou Y, que isso não define quem você é perante Deus, que isso não define o seu cristianismo — embora, evidentemente, seu cristianismo poderá e deverá influir em todas as tomadas de decisões que fazem parte da sua vida. Esse discurso é anti-bíblico. Deus é um só, mas a maneira da gente se relacionar com ele é tão diversa quanto há pessoas no mundo, e um dos sintomas disso é a quantidade de igrejas, abordagens, teologias e denominações diferentes. Isso tudo debaixo ainda do guarda-chuva do cristianismo. Então, queremos mostrar a falsidade dessa proclamação de um evangelicalismo, de um modo de se aproximar de Deus único, que hoje em dia está sendo pregado para desaguar num voto em apenas um candidato.
Tem sofrido retaliação de pastores ou donos de rádios cristãs? A retaliação existe, mas eu não a enxergo como uma conspiração. De fato, as minhas opiniões e meu posicionamentos desagradam não apenas lideranças específicas, mas alguns setores mais conservadores ou fundamentalistas, ou que estão mais amalgamados com isso que hoje se chama bolsonarismo — mas, que, na verdade, é o que a gente deveria chamar de extrema-direita religiosa. Acho que houve muita retaliação quando participei do Ato Pela Terra, a convite do Caetano Veloso, em que fiz uma pequena fala em favor da proteção da Amazônia, e para isso evidentemente mencionei a demarcação de terras e o suporte que o Estado precisa dar as aos povos originários. Eu também cantei numa igreja inclusiva, da pastora Lana Holder, a Cidade de Refúgio. Em junho cantei numa igreja em que a pastora presidente e a sua esposa, a ministra de louvor, é um casal homossexual. Isso também gerou bastante retaliação. Como disse, o cristianismo é plural. Podemos não ser a maioria, mas existimos e vamos nos posicionar.