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Kleber Mendonça Filho: ‘É uma luta inglória tentar tapar a cultura’

Diretor de 'Bacurau', exibido em Cannes, defende cinema nacional e diz acreditar que iniciativas culturais não serão freadas tão facilmente

Por Mariane Morisawa, de Cannes
Atualizado em 17 Maio 2019, 18h12 - Publicado em 17 Maio 2019, 17h59
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  • O dia seguinte à gala de Bacurau no Festival de Cannes foi agitado para os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, dando entrevistas sobre o filme, que está concorrendo à Palma de Ouro. Os dois nem tinham tido tempo ainda de ler todas as críticas sobre o longa-metragem. E elas não param de sair.

    O site americano Vulture, por exemplo, publicou um texto cujo título é “O spaghetti western distópico brasileiro que Cannes ama”. O jornal inglês The Guardian deu quatro estrelas ao candidato brasileiro, enquanto Manohla Dargis, crítica do jornal The New York Times, chamou o filme de algo como “excelente excentricidade”. Para o crítico Justin Chang, do Los Angeles Times, o longa é um coquetel rico e que satisfaz, mas também desigual.

    Bacurau é um western, com terror, aventura, ficção científica e filme de cangaço, passado num vilarejo do sertão pernambucano que desaparece do mapa e sofre com uma série de assassinatos. Mas seu povo não está disposto a deixar barato. Mendonça Filho e Dornelles conversaram com VEJA sobre o filme:

    Quais foram as inquietações que os motivaram a querer fazer o filme?

    Kleber Mendonça Filho: O desejo de fazer um filme de gênero, que na nossa filmografia não é tão comum. E a minha geração tem e continua tendo uma inclinação para isso. Meus outros filmes sugeriam alguma coisa nesse sentido. Mas desta vez, com a ajuda de Juliano, pude aloprar e trazer um filme de gênero western, às vezes um filme de horror, às vezes um filme de aventura. E é muito libertário. Fora isso, acho que a vida em sociedade traz muita tensão. Algumas dessas tensões são clássicas no cinema de gênero. Por exemplo, disputa de terras. Aqui temos um grupo de pessoas que se acham poderosas e que existem outras pessoas descartáveis – que também é algo recorrente no cinema, na literatura. Então não há nada de realmente novo no filme exceto talvez seu tom, a estranheza dele no cinema brasileiro. Eu estou começando a entender isso. E isso para mim é muito atraente, na verdade. Gosto de fazer um filme que tem uma certa personalidade.

    Kleber Mendonça e Juliano Dornelles
    Kleber Mendonça e Juliano Dornelles no Festival de Cannes – 16/05/2019 (Stephane Mahe/Reuters)
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    Juliano Dornelles: No nosso país estamos o tempo inteiro lidando com injustiças. Com pessoas agindo de maneira egoísta, ou violenta. E o outro lado sem condições de se defender, por questões históricas e sociais antigas. Eu e Kleber estávamos num festival de cinema em 2009 e vimos pessoas que eram personagens de documentários sendo tratadas de forma muito condescendente, vivendo algo que não era confortável para elas, porque não pertenciam àquele lugar, e as outras pessoas todas observando essas “figuras exóticas”. Isso nos causou um incômodo. Pensamos como seria se essas pessoas resolvessem puxar o tapete das outras. Então a gente resolveu ir pelo caminho do western, mas inverter a lógica clássica dos westerns, em que os índios são os invasores, eles gritam, grunhem, são desumanizados, a câmera filma bem de longe. São a ameaça constante, mas a câmera não tem interesse neles. E vamos combinar que na verdade os loiros de olhos azuis é que são os invasores. Isso é história, não é opinião. Fora isso, o mundo foi se transformando. Quer dizer, na verdade são ciclos. A gente entrou nesse novo ciclo, nessa guinada à direita, conservadora. E as coisas começaram a ficar mais estranhas. Porque Trump poderia ser o presidente dos Estados Unidos, e isso já era demais para nossa cabeça. A gente começou a pensar muito nos estrangeiros, em colonização e imperialismo. Bacurau foi evoluindo.

    Por que esse fascínio com o cinema de gênero?

    KMF: A geração do Cacá Diegues, do Glauber Rocha, se formou vendo o neorrealismo italiano. Então é muito natural que os filmes deles sejam neorrealistas de certa forma. Eu não fui impactado pelo neorrealismo como eles. Eu descobri o neorrealismo mais tarde. Nós crescemos vendo o cinema americano dos anos 1970 e 1980 no cinema e as séries de televisão que, boas ou ruins, fazem parte do nosso imaginário. É natural que Marco Dutra faça filme de lobisomem. Não aconteceu de Glauber fazer filme de lobisomem. Eles estavam em outra. Tive a sorte de ver filmes comerciais americanos que até hoje são filmes históricos no cinema. Então é natural que no meu sangue saia esse tipo de coisa. Só que eu sou brasileiro, eu sou pernambucano. Então tudo junta num negócio chamado Bacurau.

    Vários temas são coisas discutidas no mundo e no Brasil hoje. Claro que o filme está em desenvolvimento há muito tempo. Então como esses temas atuais acabam entrando no filme?

    KMF: É muito simples. O filme contém muitos aspectos do Brasil atual porque na verdade nós, brasileiros, infelizmente, estamos presos no Feitiço no Tempo, de coisas que se repetem. Erros que se repetem. A gente vai para a frente, daí volta três casas. Então a gente colocou uma cartela no final do filme explicando que ele impactou 800 pessoas, direta ou indiretamente. E que a cultura é uma coisa importante. É uma indústria. Em 2019 a gente tem de fazer um negócio desses. Por exemplo, o prefeito vem à cidade, e ele é desprezado pela comunidade. Tem uma voz que grita assim: “Respeite seu avô, rapaz!”. Ou seja, aquele cara vem de uma dinastia de poder naquele lugar. Então os temas que aparecem no filme parecem atuais, mas na verdade eles são velhos. Talvez a roupagem seja moderna. Eu não quero estar jogando flores no meu filme. Mas pelo que estou entendendo, é um pouco surpreendente.

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    O financiamento para a cultura sofreu uma reviravolta com o governo Bolsonaro. Como vê o futuro da cultura?

    KMF: Eu não sei o que vai acontecer. A gente está em território virgem, pelo menos na minha vida adulta, quando vi uma construção lenta, gradual, democrática, cheia de discussão, para chegar a alguma coisa ainda imperfeita. Mas era alguma coisa. Agora estou vendo uma destruição de tudo isso, e é preocupante porque para construir é lento, para destruir é muito rápido. Mas eu não sei, a ideia de cultura no Brasil é tão forte, faz tanto parte da vida das pessoas que vai ter uma reação de combate a essa ideia. Nós naturalmente estamos aqui apresentando o filme, e isso não deixa de ser um combate, um revide. Não sei o que está acontecendo na Agência Nacional do Cinema (Ancine), mas achei muito triste ela levar uma semana para anunciar os filmes que estavam em Cannes, num ano histórico, e quando anunciou não tinha o nome de nenhum dos realizadores, dos produtores. Eu não sei o que significa isso. É um tipo de peneira bem pequena para tapar o sol, porque o mundo todo divulgou a notícia. Acho uma luta inglória para quem quer tapar a cultura. Eu desejo boa sorte a essas pessoas, porque a cultura é muito mais forte. Nada segura um filme forte. Com Aquarius houve uma tentativa de boicote, e o filme passou por cima feito uma locomotiva fora de controle. Não sei o que vai acontecer com Bacurau, mas parece que é um filme que já tem uma certa força. Fico recebendo mensagem de gente do mundo todo. O filme já está em mais de vinte festivais, de ontem para hoje.

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