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‘Joaquim’ desconstrói o mito ao imaginar quem era Tiradentes

Coletiva do filme de Marcelo Gomes em Berlim contou com a leitura de uma carta de diretores revelando preocupação com a 'grave crise democrática no Brasil'

Por Mariane Morisawa, de Berlim
Atualizado em 16 fev 2017, 21h47 - Publicado em 16 fev 2017, 16h17

A maior parte dos brasileiros conhece o Joaquim José da Silva Xavier dos livros, o cara barbudo e cabeludo que foi o único a admitir participação na Inconfidência Mineira e acabou enforcado e esquartejado por isso. Mas ninguém sabe quem ele era antes de ser preso por se rebelar contra a Coroa Portuguesa. Em Joaquim, o pernambucano Marcelo Gomes se põe a imaginar quem era o homem por trás do mito. O filme foi exibido para jornalistas na manhã desta quinta-feira na competição do 67º Festival de Berlim. “Ninguém pede para ser herói. São as circunstâncias que transformam alguém em um. Quisemos tirar a postura de herói e transformá-lo num cidadão comum”, disse o diretor na entrevista coletiva, que tinha cerca de 1/3 da sala ocupada.

O filme começa com a cabeça cortada de Tiradentes, exibida como aviso para futuros rebeldes. Logo depois, volta ao passado, em que Joaquim (Julio Machado) é alferes, ou segundo-tenente, da Coroa, perseguindo os contrabandistas de ouro e pedras preciosas das Minas Gerais. Como bico, trata os dentes das pessoas da região. Ele espera por uma promoção para finalmente poder comprar sua amada, a escrava a quem chama de Preta (Isabél Zuaa), propriedade de outro negro, a serviço do Administrador do posto de recolha de impostos. A verdade, porém, é que a probabilidade de conseguir são mínimas: ele não é português, nem tem muitas posses. “Fiquei imaginando como alguém vai de soldado a rebelde, vivendo no século 18, em que o paradigma era cada um por si”, disse Gomes. “Pensei que a única forma de mudar esse paradigma era se apaixonando por alguém desclassificado e vivendo desclassificado.” O relacionamento é o ponto mais frágil da trama, apesar de dar oportunidade de colocar uma mulher como rebelde e mostrar o germe da revolta contra os colonizadores no movimento dos quilombos.

Outra chance de melhorar de vida aparece quando ele é mandado numa expedição a uma região remota, para encontrar novas minas de ouro e pedras preciosas, já que as antigas estão praticamente esgotadas. Joaquim terá uma parte daquilo que encontrar. Em sua jornada, é acompanhado pelo português recém-chegado Matias (Nuno Lopes), por Januário (Rômulo Braga), pelo escravo João (Welket Bungué) e um índio que aponta os caminhos (Karai Rya Pua).

O filme usa uma estrutura bastante tradicional, quase folhetinesca, para contar a origem do herói. A forma, porém, pretende ser moderna e urgente, com câmera na mão, em vez dos clássicos planos de poucos movimentos das produções de época. A escolha é boa na concepção, mas existe certo esgotamento do uso do recurso no cinema contemporâneo, o que prejudica um pouco o longa.

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A grande força do filme, na verdade, está nas relações que traça entre o passado e o presente do Brasil, às vezes de forma sutil, outras nem tanto. “À medida que ia lendo livros sobre o período colonial, sobre a vida privada naquela época, como comiam, viajavam se relacionavam, mais eu compreendia o Brasil de hoje”, explicou Gomes. A maior parte dos portugueses chegava ao país sozinho, com o objetivo de enriquecer e voltar a Portugal. “A ideia era explorar. Esse processo de exploração está na mente do nativo da terra, são pessoas nascidas no Brasil com sentimento de colonizador”, afirmou o cineasta. Também está presente a conflituosa e intricada relação entre as raças, em que estar apaixonado por uma escrava negra não impede um branco de ter seu próprio escravo, a quem considera “quase da família”, uma estrutura que se repete até hoje com empregados domésticos. É uma das melhores cenas quando João (Welket Bungué) vem fazer um pedido a Joaquim, quase no final do filme.

Joaquim também mostra como o povo sempre esteve afastado dos processos decisórios. Mesmo a Inconfidência Mineira era basicamente uma revolta das elites econômica e cultural motivada principalmente pela Derrama, os altos impostos cobrados pela Coroa. Tiradentes, de origem bem mais modesta, é praticamente uma exceção e, talvez não à toa, tenha sido o único a ser punido exemplarmente. O filme ainda deixa claro como a corrupção sistêmica não é coisa dos últimos dez ou vinte anos. Ela vai desde o tenente que cobra propina para não entregar o contrabandista de ouro até o comandante que diz que não vale explorar o rio de pedras preciosas encontrado por Joaquim, para obviamente poder ter lucro sozinho. A meritocracia também nunca foi o forte de um país em que um homem fugido de Portugal tem mais status do que os brasileiros que lutam há anos para galgar um degrau na carreira.

Joaquim é uma coprodução de Brasil e Portugal. Para a produtora portuguesa Pandora da Cunha Telles, é uma chance de revisionismo do ponto de vista histórico também para os colonizadores. “Ele toca numa ferida que nós, portugueses, tentamos esconder. O tráfico de escravos da África e a corrupção no Brasil são heranças de Portugal. Temos de questionar o papel de nosso país no que chamamos inocentemente de Comércio Triangular. Parar de dizer às nossas crianças que nós não fomos uma potência colonizadora, que apenas colocamos povos em contato. Isso é uma mentira. Dados os caminhos que o mundo tem tomado, temos de pensar em nossa história.”

‘Crise democrática’

Ao final da coletiva de imprensa, Marcelo Gomes leu uma versão resumida de uma carta assinada pelos diretores de onze dos doze filmes brasileiros no 67º Festival de Berlim, demonstrando preocupação com a “grave crise democrática no Brasil”, em que “direitos da educação, saúde, trabalhistas foram duramente atingidos” e que ameaça também o setor audiovisual.

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