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João Gilberto: vai, minha tristeza

Músico sai de cena como um personagem imerso em dívidas e alvo de um barraco familiar. Agora, o genial inventor da bossa nova pode enfim brilhar em paz

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 12 jul 2019, 12h01 - Publicado em 12 jul 2019, 06h30

Pode-se extrair da letra de O Pato, um dos maiores sucessos de João Gilberto, o resumo dos atos finais do cantor: seus derradeiros anos de vida foram um mato e um desacato. Teimoso que só ele, com a razão obscurecida pela idade, João Gilberto acumulava dívida milionária. Era, ainda, espectador e ao mesmo tempo protagonista de um desairoso barraco familiar. Os filhos João Marcelo, do casamento com a parceira Astrud, e Bebel, fruto da união com a cantora Miúcha, não se entendiam sobre a administração dos bens do pai — e digladiavam-se com Claudia Faissol, ex-empresária e mãe de sua terceira filha, a adolescente Luísa. No auge da disputa, João Gilberto sofreu um processo de interdição por parte de Bebel e quase teve seu apartamento, no bairro carioca do Leblon, arrombado por ordem judicial. Dias atrás, certa calmaria veio dar alento ao cantor: em rara aparição pública, João Gilberto foi flagrado com rosto sereno, trajando um terno emprestado, durante jantar em um restaurante do Rio. Foi a última vez que o mestre deu o ar de sua graça. No sábado 6, a neta Sofia, de 3 anos, anunciou em seu perfil numa rede social: “Meu amado vovô virou uma estrelinha, a estrela mais brilhante do céu”. Morto em decorrência de causas naturais, aos 88 anos, o conturbado personagem João Gilberto saiu de cena para que o genial artista João Gilberto possa exibir seu brilho eternamente.

João Gilberto e a bossa nova, ritmo do qual ele foi inventor e o principal porta-voz, foram símbolos da autoestima de uma era de ouro do Brasil. Em 1958, ano em que lançou o compacto de Chega de Saudade, a seleção brasileira tinha vencido a Copa do Mundo na Suécia, revelando ao mundo Pelé e Garrincha. O país era governado por Juscelino Kubistchek e vivia um momento de otimismo. O novo ritmo era o sinal de tempos melhores. Nos dias que se seguiram à sua morte, virou lugar-­comum dizer que, junto com João Gilberto, desaparece um Brasil idílico que sabia sonhar grande. Ante um presente de tantas crises — moral, política e econômica —, é tentador se deixar levar por essa visão pessimista. Mas a obra de João Gilberto é um antídoto contra a melancolia: ao produzir música de altíssima octanagem munido apenas de um banquinho e de um violão, ele provou que, com gênio e obstinação, é possível extrair realizações sublimes da simplicidade e do despojamento caros à nossa tradição.

Gilberto e seu violão anunciaram a chegada de contemporâneos e seguidores como Carlos Lyra, Marcos Valle, Nara Leão e de um grande número de instrumentistas e arranjadores que dariam contribuições pessoais à bossa nova. Sua batida e seu novo jeito de cantar deixariam uma marca incontestável nas novas gerações, dos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil (cujo disco Gilbertos, de 2014, é dedicado ao mestre) a um intérprete capixaba chamado Roberto Carlos. A rigor, ele não foi o primeiro a angariar aclamação internacional para a música brasileira, mas conferiu a ela um selo de prestígio e influência. A reverência se inicia com lendas do jazz e do cancioneiro americano como o trompetista Miles Davis e o cantor Frank Sinatra e chega a intérpretes de gerações posteriores — Diana Krall, Stacey Kent e John Pizzarelli estão entre seus discípulos mais devotados.

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Moleque aventureiro de Juazeiro, no sertão baiano, João Gilberto admirava o canto estoura-peito de Orlando Silva e Dorival Caymmi. Ainda na cidade natal, formou o grupo Enamorados do Ritmo. Em 1947, mudou-se para a capital, Salvador, a fim de completar os estudos — que seriam abandonados de vez dois anos depois, quando passou a integrar o cast da Rádio Sociedade da Bahia.

O João Gilberto que se mudou para o Rio em 1950 era diferente do que conhecemos hoje. Estava preso ao modo de cantar consagrado daquele período, mais próximo do então adotado pelos crooners de orquestra. E — suprema heresia — seu violão não se fazia ouvir. João arrumou trabalho aqui e acolá, iniciou amizades preciosas com o cantor Lucio Alves e o violonista Luiz Bonfá e, depois, bandeou-se para a gaúcha Porto Alegre e a mineira Diamantina. Foi nessa última que aprimorou seu estilo peculiar de tocar violão. Voltou ao Rio em 1957 para, segundo Tom Jobim, “influenciar toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”.

O zelo extremado com o qual cuidava de sua obra lhe rendeu a inescapável fama de excêntrico — e ranheta. Para muitos, João Gilberto seria só um chato cheio de manias, que se comprazia em reclamar da acústica das casas de espetáculos e da plateia, que insistia em cantar baixinho o repertório em vez de admirar suas interpretações. Mas havia razão nos seus queixumes. Famoso por seu ouvido prodigioso, ele sabia que era necessária uma boa acústica para apreciar a sonoridade que saía de seu violão. Nas mãos do baiano, o samba ganhava um tratamento de música de câmara: era delicado e refinado, sem deixar de ser popular. Costuma-se dizer que João Gilberto trazia uma orquestra inteira sob as mãos. O polegar assumia a função do surdo e os outros dedos eram os tamborins. O resultado, único, é aquilo que Gilberto Gil chamou de “samba desossado”.

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João Gilberto não foi um mero intérprete: suas gravações são um exercício admirável de “recomposição” dos originais. Ele praticamente desconstrói as canções, que podem ganhar andamento mais lento ou acelerado. Embora não seja o autor de sucessos como Chega de Saudade, Garota de Ipanema e Desafinado, ele os tornou seus por direito, já que revelou a personalidade definitiva desses clássicos. Seus três discos mais importantes, há muito tempo fora do mercado, são alvo de uma disputa entre o artista e sua ex-­gravadora, a EMI (cujo catálogo hoje pertence à Universal). Em razão da teimosia de João, a briga se arrasta por anos na Justiça. Com sua saída de cena, espera-se que a gravadora e a família cheguem a um acordo capaz de resgatar as pérolas. O Brasil e o mundo não merecem pagar o pato.

 

Publicado em VEJA de 17 de julho de 2019, edição nº 2643

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