Volta e meia, um enrosco arrasta o nome de João Gilberto para o lugar que o recluso e intempestivo músico mais detestava: a luz dos holofotes. O inventário do gênio da bossa nova, morto em julho de 2019, aos 88 anos, se tornou um desses temas espinhosos, entremeado de disputas, reviravoltas e trocas de farpa entre herdeiros que não se bicam. Agora, a contenda da vez gira em torno do primogênito do artista com a cantora Astrud Gilberto (1940-2023), João Marcelo de Oliveira, 64 anos, ter tido a prisão decretada pela Justiça do Rio de Janeiro, em 27 de setembro, por descumprir ordens judiciais. O produtor musical, que mora nos Estados Unidos, deveria, segundo determinação da juíza, deletar postagens nas redes carregadas de ataques à honra de sua ex-mulher, Adriana Magalhães, 50 anos, também produtora. Ele desacatou as ordens e redobrou a artilharia, desafiando as autoridades. E dá-lhe chumbo grosso contra a companheira com quem passou junto nove anos entre idas e vindas e que hoje briga pela guarda da filha, neta caçula de João Gilberto, uma menina de 8 anos nascida em solo americano e que vive no Brasil. O enredo é desafinado.
Um levantamento feito por VEJA mostra que há quase uma dezena de processos na Justiça movidos um contra o outro, o que dimensiona a extensão da encrenca. O caldeirão de rusgas entre os dois entornou no segundo semestre do ano passado, quando João Marcelo passou a acusar a ex de “sequestro da filha” e entrou na 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro com uma ação de busca e apreensão da criança, com base na Convenção de Haia — o tratado estabelece regras para o retorno imediato de menores mantidos fora de seu país de forma ilegal. Em julho de 2023, o produtor já havia ido a uma delegacia do estado de Nova Jersey, onde reside, para relatar que não via a filha desde 2019 e alegou “subtração internacional da criança”, ou seja, rapto. A partir daí, passou a postar a cópia do boletim de ocorrência, na qual colou uma foto da ex-mulher e tascou ali a palavra wanted (procurada). “Isso é absolutamente falso. Ele está usando um registro de ocorrência como se fosse um mandado de prisão contra a minha cliente”, critica o advogado Fernando Augusto Fernandes. A defesa do produtor, representada pela banca de Deborah Sztajnberg, assegura que existe, sim, um mandado de prisão expedida contra Adriana em um processo que corre lá fora. Mas em órgãos de instâncias de cooperação internacional, como a Interpol, não se encontra nada do gênero.
Em meio à pancadaria verbal, o tribunal da cidade de Ocean, em Nova Jersey, extinguiu, em 30 de setembro, a ação que o filho de João Gilberto movia ali e recomendou que a guarda fosse discutida no local de residência da criança, o Brasil. “Concordamos em criar a nossa filha biculturalmente, dividindo nosso tempo seis meses em cada país”, diz nas redes o produtor, argumentando que a ex rompeu o acordo quase que imediatamente. Em outro post, ele parte para a agressão: “Por que Adriana não está presa? Por que o Brasil está protegendo uma mulher que sequestrou a neta dos dois brasileiros mais famosos da terra?”, provocou, invocando a fama dos pais.
A ex-mulher, por meio dos advogados, afirma que, nos últimos cinco anos, período em que ele não encontrou a filha, João Marcelo — que nem sequer viajou ao Rio para o enterro de João Gilberto — nunca foi impedido de estar com a menina. Na época, não cruzou a fronteira americana por estar em processo de naturalização. Amigos do círculo íntimo do casal contam ter testemunhado estocadas dele contra a mulher, em que a emparedava: “Ou você aceita minhas ordens, larga sua família no Brasil e vem morar aqui ou acabo com sua vida”.
O afastamento entre pai e filha, afirma a defesa de Adriana, não contém nenhum elemento legal para ser tachado de sequestro porque a garota não vivia nos Estados Unidos, país que visitava com a mãe enquanto ela mantinha o relacionamento aqui e lá com João Marcelo. A favor dela pesa o fato de a filha ter deixado Nova Jersey com um passaporte em que constava a autorização do pai para o voo e, além disso, a mãe é que detinha sua guarda — “exclusiva”, aliás, desde outubro de 2023, de acordo com sentença da 5ª Vara de Família do Rio. Um ponto decisivo para tal resolução da Justiça foi o relato da própria filha do casal, que descreveu o comportamento do pai em suas temporadas nos Estados Unidos. “A menina disse que ele tinha um jeito estranho, antissocial e por qualquer coisa batia nela e a trancava no quarto. E que usava entorpecente o dia todo”, revela uma pessoa ligada à família. “Essa mãe faz uma lavagem cerebral. Ela usou palavras que não são comuns a uma criança”, contesta a advogada Deborah Sztajnberg.
O zum-zum-zum no vespeiro familiar não cessa. Adriana, que morou um ano com João Marcelo em uma cobertura de Ipanema cedida por um amigo de João Gilberto, casando-se em 2015 em terras americanas, também move contra ele uma ação de violência doméstica, ancorada em ameaças e agressões virtuais. No desenrolar da pendenga, foi expedida uma medida protetiva a seu favor, e o produtor musical, além de não poder se aproximar dela, agora só tem autorização para falar com a filha na presença de assistentes sociais, segundo confirmou a reportagem de VEJA. A defesa de João Marcelo rebate, alegando que a ex-mulher pratica “alienação parental”. O mesmo escritório, ao ser indagado por que o cliente não paga a pensão alimentícia estipulada em cerca de oito salários mínimos, sai pela tangente. “Por que então ela não devolve a menina para o pai? Por que seus presentes não chegam? Por que ela (Adriana) não para de explorá-la?”, questiona Sztajnberg. A última pergunta é motivada pela menina estar dando os primeiros passos na área musical, a exemplo dos avós, situação da qual a mãe estaria supostamente se beneficiando. “Quanto às postagens de João Marcelo não apagadas, são um direito de expressão dele. A ordem de prisão é uma medida descabida, inócua e de cunho censório”, arremata a advogada.
Não é a primeira vez que o primogênito da prole de três filhos de João Gilberto, notório pelo temperamento belicoso e pouco afeito a tecer acordos diplomáticos, se vê envolto em duelos familiares. Nos últimos anos de vida do grande músico, quando ele já estava sob interdição parcial, Bebel Gilberto moveu uma ação obrigando o meio-irmão a retirar da internet manifestações “insidiosas” contra ela e a mãe, a cantora Miúcha. O produtor também desferiu ferozes ataques verbais contra a jornalista Claudia Faissol, levantando dúvidas sobre o criador da bossa nova ser realmente o pai da filha dela, embora houvesse um exame de DNA à mesa. No capítulo da divisão dos bens, a moçambicana Maria Céu Harris, que pleiteia o posto de companheira do artista, foi outro dos alvos da ira de João Marcelo. “Meu pai só a deixava ficar nos apartamentos dele porque ela cuidava dos gatos e comprava maconha para ele”, afirmou. As tintas do barraco se tornam ainda mais gritantes ao saber que, no centro de tudo, está uma criança. É lamentável. João Gilberto merecia legado familiar melhor.
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2024, edição nº 2914