Isabel Fillardis: ‘Protagonismo é meu objetivo’
A atriz superou um câncer e hoje se divide entre a carreira e ser mãe de filhos atípicos
A televisão e a dramaturgia vieram para mim de forma muito fluida. Eu trabalhava como cantora e modelo e ia começar uma oficina de atores. Aí veio o teste para a Ritinha, de Renascer. Quando terminei a novela, pensei: “Nasci pra fazer esse negócio”. Eu já tinha certa visibilidade na moda, mas era uma menina de 18 anos. Entendia de forma muito sutil a questão do racismo. Não tinha ideia do que era estar em uma novela das 9 de Benedito Ruy Barbosa. Essas grandezas e importâncias foram chegando para mim ao longo da minha trajetória. Grande Otelo e Chica Xavier me pegaram no colo nesse sentido. São figuras que eu carrego comigo como mentores, como guias e protetores.
Meu olhar em relação à vida foi mudando. Primeiro pela maternidade, depois pelos meus renascimentos. Falo isso sem romantismo. A maternidade é um dos maiores projetos da vida de uma mulher. Mas não é fácil trazer um ser ao mundo e contribuir para que ele seja o melhor e o mais feliz possível. Eu tenho histórias grandiosas com três filhos atípicos (o mais novo é autista, a mais velha tem ansiedade e o do meio, síndrome de West, doença neurológica rara). Dolorosas, mas grandiosas. Ser mãe me trouxe mergulhos profundos no entendimento do ser humano e na capacidade que nós temos de ser bons e ruins ao mesmo tempo. Também tive um câncer. Esse é o momento que a gente pensa: game over. É uma jornada solitária. O paciente precisa de muita alegria, amor e conforto, porque a doença não começa no corpo, ela começa na alma. Após duas cirurgias na língua, eu não falava normalmente, como falo hoje. Foi assustador, e cheguei a pensar que não voltaria a atuar. Mas voltei com muita gana. Gana de viver, de amar, de ver meus filhos crescerem e serem felizes, gana de tudo. As pessoas vivem nesse planeta com a sensação de que são eternas aqui, mas o relógio pode parar a qualquer hora. Depois disso, você agradece cada dia de vida.
Agora, quero fazer tudo aquilo que o universo achar que me cabe. Minha mãe me criou com todas as munições necessárias para estar nos lugares sem achar que aquele não era o meu lugar. Ainda que o racismo me atravessasse pela lateral ou bem na minha frente, ele não me contaminava. Com o tempo, fui tomando consciência da minha representatividade. Essa palavra não existia na década de 1990. Foi só dos meus 40 anos para cá que recebi mais diretamente, até por causa das redes sociais, relatos de pessoas, principalmente mulheres pretas, falando sobre isso. São falas como “eu deixei o meu cabelo assim porque eu via você. Sonhei em ser artista porque via você”. Fico feliz da vida. Hoje, tenho consciência de que contribuí para isso. Quero ver todos os tipos de pretos e pretas nesses lugares de liderança e protagonismo. Eu, inclusive, fui chamada para ser protagonista de uma novela uma vez, mas me cortaram. Tinha uns 20 e poucos anos. Foi uma experiência dolorosa, que não desejo a ninguém. Tudo o que a gente espera, sobretudo como mulheres pretas, é a oportunidade de fazer um papel de importância e alcançar esse lugar que nos pertence.
Hoje, o protagonismo não é um desejo, é meu objetivo. Sempre será. Mas não é uma fixação. Entendi nesses processos que eu mesma posso promover os meus protagonismos. Não existe só um caminho: tem o audiovisual, tem o teatro, são várias possibilidades que estou percorrendo. Também venho descobrindo outros talentos. Além de cantar e representar, componho, faço direção artística, figurino, empreendo e escrevo. Tenho agora a minha autobiografia, Muito Prazer, Isabel: Cristina & Fillardis (Ubook), escrita e em audiolivro. Contar a própria história é uma viagem. Você revisita dores e memórias, e as ressignifica. Tem muita cura nesse livro, e espero que não só para mim. Quero poder ser um farol para as mulheres.
Isabel Fillardis em depoimento a Amanda Capuano
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920