Reunida num simpático café no número 11 da Rue de Batignolles, em Paris, uma jovem turma de artistas oscilava entre a euforia e o medo do que o dia seguinte lhe reservava. Estavam prestes a tentar firmar terreno no tradicional mundo das artes francês, afeito aos pilares do academicismo e à perfeição das formas. Já eles, embalados pela agitação à sua volta, faziam dos pincéis um instrumento sem qualquer compromisso com os contornos, capazes de captar as nuances da luz no exato instante em que ela compunha as efervescentes cenas da modernidade. Foi em 15 de abril de 1874 que o grupo, rejeitado pela Academia de Belas Artes e banido do Salão Anual, no Museu do Louvre, inaugurou sua própria exposição em um estúdio cedido pelo fotógrafo Félix Nadar. O rol de trinta aspirantes ao sucesso incluía Claude Monet, Pierre-Auguste Renoir, Edgar Degas e Paul Cézanne — todos em busca da visibilidade que não alcançavam no circuito oficial. A crítica foi demolidora. “Papel de parede em seu estado mais bem-acabado”, disparou o respeitado Louis Leroy sobre Impressão, Nascer do Sol, a emblemática tela de Monet, arrematando: “Isso não passa de uma impressão”.
Ao desfiar sua aversão às céleres pinceladas, que a ele e aos outros soavam obra inacabada, o implacável crítico jamais imaginaria ingressar para a história dando nome e identidade ao movimento que ali se apresentava — o impressionismo. Agora que completa 150 anos, o impulso criativo do qual emergiria a arte moderna poderá ser revisitado em uma recém-inaugurada exibição no Musée d’Orsay, a ex-estação de trem às margens do Sena, onde seguirá até 14 de julho. “É a mais completa reconstrução daquela noite de 1874”, disse a VEJA Mary Morton, uma das curadoras de Paris 1874: Inventando o Impressionismo.
Em parceria com a National Gallery de Washington, para onde a coleção viajará em setembro, o museu parisiense conseguiu unir a seu espetacular acervo uma série de telas emprestadas, chegando a 130 exemplares — 90% da mostra original, alojada no ateliê do Boulevard de Capucines, próximo à Ópera. Uma imersão com óculos de realidade virtual nas salas que demarcaram um “antes e depois” na trajetória das artes, ouvindo o que os artistas falavam de suas pinturas, enlaça a experiência. “A ideia é mostrar a visão de mundo dessa geração”, diz Morton. Centenas de obras dessa profícua fase estarão em destaque nas paredes de museus por toda a França.
Apesar de massacrados, os impressionistas — um grupo eclético que tinha como elo o olhar afiado para o presente, em contraste com a admiração da corrente neoclássica por episódios bíblicos e mitológicos — seguiram seu percurso, expondo ano após ano. Um hábito em comum era se aventurar ao ar livre, onde havia abundância de sua matéria-prima — a luz — e fartura de temas — o vaivém dos trens, a ebulição dos cafés, a natureza em ação. A invenção dos tubos de tinta provou-se revolucionária, já que permitia criar longe dos ateliês. Não raro, eles escandalizavam o observador ao priorizar as nuances da luz sobre qualquer detalhe pictórico. “Ele é uma espécie de louco, pintando em estado de delírio”, disse o jornalista Marc de Montifaud sobre Uma Olympia Moderna, de Cézanne. O artista que plantaria a semente do cubismo estava homenageando Édouard Manet, espécie de mestre da turma, que havia feito seu próprio Olympia em 1865. O quadro abalou o sisudo Salão por retratar uma nudez não idealizada de uma mulher que seria prostituta.
O caldeirão em que estavam mergulhados os impressionistas era o da vida moderna, que fervia com as inovações tecnológicas exibidas nas vitrines das exposições internacionais em Paris, onde a alta-costura ganhava estatura e a gastronomia, ela também, seria convertida em arte. Passado o traumático cerco que marcou a derrota na guerra franco-prussiana, seguido do colapso do Segundo Império e da sangrenta insurreição da Comuna de Paris, pairava um alívio no ar. Foi nesse contexto que o ímpeto revolucionário dos impressionistas fervilhou. “Capturando momentos fugazes e espontâneos, eles realizaram as primeiras representações visuais da modernidade e, com isso, a elevaram a outro patamar”, avalia Nancy Locke, professora de história da arte na Universidade Estadual da Pensilvânia.
Em paralelo, havia outra virada em curso — não eram mais a Igreja e o Estado os únicos fregueses das artes, mas uma burguesia que aflorava e arrematava telas dos ascendentes merchants. Tido como o mais relevante deles na época, Paul Durand-Ruel adquiriu sozinho 12 000 quadros para revendê-los, pagando adiantado aos artistas. Assim, eles conquistaram liberdade para alçar seus voos. “Os impressionistas ampliaram o antes limitado escopo do que poderia constar em uma tela. Foi o verdadeiro nascimento da pintura moderna”, pontua o historiador da arte Felipe Martinez, da Universidade de Amsterdã.
Em 1886, as diferenças de visão, aliadas a obstáculos logísticos, acabaram dissolvendo a turma que tanto barulho fez no Boulevard de Capucines, mas ela continuou dando frutos e influenciando outros — entre eles Georges-Pierre Seurat, mestre do pontilhismo, e mais tarde Henri Matisse, que se mirou na ensolarada Banhistas na Grenouillière, de Monet, para compor Luxo, Calma e Volúpia (1904), onde mulheres nuas desfrutam de um piquenique numa paisagem cheia de cor. O longevo Monet viveria para testemunhar radicais desdobramentos do que semeara não muito tempo antes, como o urinol exposto em museu por Marcel Duchamp, em 1917, um marco na própria discussão do que é arte. Ela deve muito, afinal, ao grupo que ousou fazer tudo diferente.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886