Na graphic novel Revolta da Vacina (Darkside), um jovem cearense se muda de Fortaleza para o Rio de Janeiro no início do século XX para tentar a carreira como ilustrador na imprensa. Zelito, o protagonista, desembarca na então capital federal em 1904, em meio a uma crise sanitária sem precedentes, causada pela proliferação de doenças como varíola, febre amarela e peste bubônica. Enquanto vive seu drama, procurando espaço em vários jornais, o personagem testemunha a revolta da população contra o programa de vacinação obrigatória imposto pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz. Para o autor da obra, André Diniz, a vacina teve resistência da população carioca naquele período por razões mais justificáveis do que acontece hoje em plena pandemia de Covid-19. “Faltava informação e habilidade política, além de a ideia da imunização em massa ser algo totalmente novo para aquela época”, diz ele. Quadrinhos como o de Diniz, que põem a história do Brasil e do mundo em perspectiva, têm proliferado nas livrarias.
São cada vez mais comuns trabalhos que abordam fatos históricos, como Guerra 1939-1945 (Conrad), de Julius Ckvalheiyro, sobre a participação de pracinhas brasileiros no combate ao nazismo durante a II Guerra, ou que são ambientados em determinado evento ou período, como o premiado Angola Janga (Veneta), de Marcelo D’Salete, que acompanha negros escravizados em fuga no ocaso do Quilombo dos Palmares, no século XVII. A diferença entre as duas vertentes é o foco. No primeiro caso, a prioridade é contar o episódio. No segundo, a trama envolvendo os personagens. A novidade é que, com o crescimento do volume de histórias em quadrinhos nacionais publicado anualmente, aumenta-se a percepção de que o filão esteja sendo muito bem explorado. “O que há é maior quantidade de produções em quadrinhos e, por consequência, maior volume de publicações com algum desses caminhos históricos”, diz Paulo Ramos, professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo.
Outra linha que vem ganhando relevância entre quadrinistas é a das biografias históricas. Lançamento recente, King (Veneta), do americano Ho Che Anderson, passa em revista a vida e obra do prêmio Nobel da Paz e ativista pelos direitos civis Martin Luther King Jr. (1929-1968), da infância, em Atlanta, até o assassinato, em Memphis. Gestada ao longo de vinte anos, a obra foge do tom reverente e lança um olhar crítico sobre a complexa trajetória do pastor batista, mostrando um homem, ao mesmo tempo, corajoso e também molestado por angústias e dúvidas morais. Um paralelo com o Brasil é Carolina (Veneta), de Sirlene Barbosa (roteiro) e João Pinheiro (desenhos), que conta a história de Carolina de Jesus (1914-1977), escritora conhecida pelo livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, publicado originalmente em 1960.
Em todos os casos, os quadrinhos de temática histórica têm servido como material de apoio em sala de aula. A tendência era a de olhar obras que abordassem apenas os grandes fatos históricos. De uns anos para cá, têm sido exploradas também produções ambientadas em momentos específicos. Um diferencial é que elas dão voz a figuras negligenciadas, como índios, negros e pobres. “É uma maneira de inserir o fato na realidade do aluno”, diz Ramos. Outra possibilidade, de acordo com o editor de quadrinhos Marcelo Alencar, é explicar aos estudantes que a história é capaz de ser apresentada de diversas maneiras. “Ela pode ser contada segundo interesses, ideologias e crenças diversas”, diz Alencar. As HQs não são apenas divertidas, mas, acima de tudo, têm lições valiosas a oferecer.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754