Em 2012, José Junior acabou sendo levado a uma quarentena forçada, por assim dizer. Ameaçado de morte após denunciar um esquema que envolvia um pastor e bandidos de uma favela carioca, o líder da ONG AfroReggae mudou sua rotina agitada e passou a andar com escolta 24 horas por dia, durante cinco anos. “Vivia com policiais do Bope na porta de casa, e eles não gostavam muito de mim. Achavam que eu era amigo de traficantes”, conta. O jeito foi quebrar o gelo. “Fiz amizade com os caras e comecei a malhar com eles. Até fiquei fortão.” A convivência permitiu ao ativista e roteirista descobrir detalhes dos bastidores e da cultura do Batalhão de Operações Policiais Especiais, braço da Polícia Militar do Rio que provoca as mais variadas emoções, do excesso de admiração por uns ao repúdio de outros. A experiência serviu de inspiração para a bem-sucedida série Arcanjo Renegado, produção da Globoplay disponibilizada recentemente na plataforma de streaming da Globo.
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Junior traz para o centro da trama o fictício policial do Bope Mikhael (Marcello Melo Jr.), líder marrento da equipe Arcanjo, a mais letal do batalhão. O pai do personagem foi um policial militar assassinado quando ele era criança. O senso de justiça de Mikhael não tem tons de cinza: bandido bom é bandido morto. Inevitavelmente, a eletrizante série lembra o sucesso Tropa de Elite (2007). Divisora de águas do cinema nacional, a obra do diretor José Padilha celebrizou o Bope para além da paisagem carioca. Mais que isso, mudou o ponto de vista pelo qual a dramaturgia nacional retrata esse universo. Se o popular Cidade de Deus (2002) consagrava o chamado favela movie, que observa a violência nas comunidades pobres sob o prisma dos criminosos, Tropa de Elite pôs em foco a figura do policial. Arcanjo Renegado encabeça um filão da TV que expande e traz novas nuances a esse olhar.
O surgimento simultâneo de toda uma safra de filhotes de Tropa de Elite não é à toa: as séries refletem um instante peculiar do debate sobre segurança no país. Tanto quanto se louva a bravura dos policiais e a necessidade de valorizá-los, não se pode minimizar o problema das milícias e seu rastro de violência nos subúrbios do Estado do Rio. As produções dão conta de variadas perspectivas do tema. Ao longo dos dez episódios da primeira temporada de Arcanjo Renegado, Mikhael percebe que os bandidos que ele combate não são exclusividade das favelas onde vira e mexe precisa atuar. Quanto mais Mikhael se destaca no batalhão, mais tem acesso a políticos e policiais corruptos, que põem em xeque suas crenças. Na próxima temporada, prevista para 2021, ele vai encarar uma realidade que bem poderia ser continuação do segundo filme do Capitão Nascimento, Tropa de Elite: o Inimigo Agora É Outro (2010), quando Padilha se embrenhou no crescimento do poder paralelo das milícias. “Existe um tripé perigoso no Brasil que é quando você junta política, crime organizado e religião. Vamos explorar isso na segunda temporada”, conta Junior, que diz ter contato e diálogo com as duas pontas da equação, do policial fardado ao chefão do morro.
A relação entre polícia e bandido atrai não só pelos elementos óbvios de uma narrativa, como ação e suspense. Ela ajuda, também, a entender o país. Nas séries atuais, tal interesse resultou em tramas mais longas e aprofundadas. Em 1 Contra Todos, exibida no canal pago Fox Premium 2 e cuja nova temporada acaba de estrear, o protagonista Cadu é um advogado (o ótimo Julio Andrade) que tenta a todo custo ser correto. Vítima de uma armação — a polícia encontra 1 tonelada de maconha no teto de sua casa —, ele ganha na cadeia o apelido de Doutor do Tráfico. Para sobreviver, Cadu veste a carapuça. O personagem não é policial, mas cruza com um vasto painel da categoria, de carcereiros a um delegado mau-caráter. O enredo foi inspirado na história real de um homem detido injustamente nos anos 80. Ele também foi encontrado com uma quantidade obscena de drogas em casa e precisou se adaptar para encarar a prisão. Contou sua experiência ao diretor Breno Silveira, mas pediu para se manter anônimo. “Quando a história chegou à minha mão, pensei: é um ‘Breaking Bad brasileiro’. Mas percebi que na verdade é Macunaíma, um herói torto e carismático”, diz Silveira.
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Agora na reta final, a série da Fox foi uma das primeiras a aquecer o gênero na TV, em 2016. A partir da mesma época, a Globoplay passou a investir em originais nessa linha. Vieram da plataforma Alemão, sobre policiais infiltrados no morro, e Carcereiros, baseada em obra de Drauzio Varella e com Rodrigo Lombardi na pele de um íntegro agente penitenciário. Ambas tiveram versões bem acolhidas no cinema.
Não haveria, então, destino melhor que a Globoplay para José Junior. Ele transformou o braço audiovisual do AfroReggae em uma usina criativa. É dele também A Divisão, que fala da onda de sequestros no Rio dos anos 90. Para compor a história, que terá uma segunda temporada neste ano, Junior trouxe à sala de roteiristas desde o policial que desmontou o esquema até sequestradores e suas vítimas. Confinado em casa, como boa parte do país, ele aproveita para escrever as próximas temporadas da atração, assim como duas outras tramas em fase embrionária. Junior espera que as séries passem adiante as lições aprendidas por ele até aqui. “Os sequestros no Rio acabaram quando a esquerda e a direita se uniram. É dessa união que o Brasil precisa”, prega. Além de doses elevadas de tiro e pancadaria, os filhotes de Tropa de Elite nos dão o que pensar.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682
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