Gênio em miniatura: leilão de desenho de Da Vinci agita mundo da arte
Com só 7 centímetros de largura, um esboço deve alcançar milhões de dólares em evento no dia 8 — mas os traços do mestre têm valor inestimável
Filho ilegítimo de um tabelião vindo de uma linhagem de notáveis, Leonardo da Vinci (1452-1519) herdou do pai a fixação por um bom caderninho de anotações. Conforme o biógrafo Walter Isaacson, o gênio renascentista carregava na cintura um maço de papéis nos quais anotava e desenhava tudo o que sua curiosidade irrefreável detectava pela frente. Cerca de 7 200 dessas páginas sobreviveram para a contar a história e constituem a maior prova da mente extraordinária de Da Vinci. Na atordoante torrente de informações contida nelas, o desenho realista de um urso (não sem certa languidez misteriosa no olhar) sempre passou despercebido para as massas. Não mais.
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Nos próximos dias, as atenções estarão voltadas para o leilão dessa joia em miniatura que ocupa um quadrado de papel de apenas 7 por 7 centímetros. Sua venda acontece na quinta 8, em Londres, e estima-se que renderá à Christie’s até 16,7 milhões de dólares. “Cabeça de um Urso tem potencial para quebrar o atual recorde de preço pago por um desenho de Da Vinci”, disse a VEJA o curador da área na tradicional casa de leilões, Stijn Alsteens. Até agora, o valor mais alto já desembolsado por um esboço do artista havia se dado em 2001, quando foi a martelo por 11 milhões de dólares o magnífico estudo de um cavaleiro e seu animal, que serviu de base para uma parte da célebre pintura inacabada A Adoração dos Magos (1481). É improvável, porém, que o simpático ursinho supere os desenhos de outro velho mestre que são os atuais recordistas: duas obras do também renascentista Rafael Sanzio (1483-1520) leiloadas em 2009 e 2011 por somas na casa dos 30 milhões de dólares.
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São números de uma escala muito inferior aos 450 milhões de dólares que fizeram de Salvator Mundi (1490-1500) — pintura atribuída tardiamente a Da Vinci — a obra de arte mais cara da história. Ainda assim, é uma dinheirama brava para esboços de dimensões ínfimas. Mas sua valorização não é tão descabida assim. Cabeça de um Urso é um dos oito últimos desenhos de Da Vinci ainda em mãos de colecionadores privados e, em tese, disponíveis para venda (outros milhares de itens estão em mãos de museus ou de acervos intocáveis, como a coleção da rainha Elizabeth II). Só em condições astrais muito peculiares, enfim, uma preciosidade dessas fica ao alcance de quem der o maior lance.
Avaliar os desenhos de Da Vinci só à luz do jogo especulativo dos leilões é, claro, diminuir seu valor inestimável. Eles compõem, afinal, um panorama muito mais abrangente de seu legado que as escassas 25 pinturas que deixou, muitas das quais inconclusas — o mestre era conhecido pela procrastinação sem fim. É nos escritos e rabiscos que ele expôs suas ideias geniais sobre tudo: há estudos de física e astronomia, projetos de engenharia como a famosa máquina voadora, a imagem incontornável de seu Homem Vitruviano, além de esboços de retratos, investigações sobre anatomia, botânica e zoologia. “Muitos de seus desenhos romperam com as antigas tradições e atingiram um grau de excelência artística nunca antes visto”, diz o curador Alsteens. Um exemplo da qualidade excepcional é o célebre Retrato de Turim. Pintado com giz vermelho, o ancião com barba exuberante e sobrancelhas grossas expõe, em seus finos traços, todo o esplendor do sfumatto, técnica que Da Vinci consagraria em quadros como a Mona Lisa. Hoje há dúvidas se a obra é mesmo um autorretrato, mas o fato é que ela passou assim à posteridade.
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Como esse e outros tantos detalhes na obra de Da Vinci, o contexto em que Cabeça de um Urso foi feito também é nebuloso. Sabe-se que na década de 1480, em meio a pesquisas sobre anatomia, dissecou ursos de verdade (então comuns na Toscana). E deixou outros estudos do tema — como um pertencente ao Museu Metropolitan, de Nova York. Apesar das lacunas que cercam o desenho, aparentemente não paira sobre Cabeça de um Urso a mesma controvérsia que atinge o Salvator Mundi: seria mesmo uma obra de Da Vinci? O desenho foi atestado pela primeira vez em 1937, pelo connoisseur britânico A.E. Popham, e os estudiosos até agora têm sido unânimes em atribuir seus traços ao pintor. No século XVIII, ele pertenceu a um colecionador francês, que pôs no canto de baixo o nome de Da Vinci, além de dar-lhe uma moldura. Depois, passaria por inúmeros donos ingleses — hoje, é de um espólio familiar com identidade mantida sob sigilo. Pelo jeito, o urso em breve será de um novo — e rico — felizardo.
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745
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