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“Fui amarrada e espancada na escola”, diz Alice Marcone, roteirista trans

Ela venceu o preconceito e hoje escreve uma cultuada série da Amazon

Por Tamara Nassif Atualizado em 4 jun 2024, 13h06 - Publicado em 21 ago 2021, 08h00
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  • ALICE MARCONE -
    ALICE MARCONE – (Daniel Weber/VEJA)

    Quando fui convidada a participar do grupo de roteiristas da série nacional Manhãs de Setembro, do Prime Video (plataforma de streaming da Amazon), eu me vi diante de uma missão que diz muito sobre os dilemas da minha própria identidade. Cassandra, a protagonista, é uma mulher trans que finalmente encontrou um rumo para si. Mas, trabalhando de dia como motogirl e à noite como cantora, ela se abala ao descobrir que tem um filho de uma antiga relação hétero. A premissa da série já existia quando me juntei ao grupo, mas o desafio era fazer com que a história não caísse num grande drama, e sim que fosse leve, uma “dramédia”. Para isso, a trama não deveria girar em torno do fato de a protagonista, vivida pela cantora Liniker, ser trans. Ela não é uma bandeira: é um ser humano, que comete erros e acertos. É fácil se identificar com a Cassandra, pois seus dilemas são universais. Como uma mulher trans, creio ser essa a melhor maneira de mostrar quem são as pessoas dentro da dita diversidade da televisão.

    Cresci em um ambiente embebido em cultura popular, na zona rural de Serra Negra, no interior de São Paulo. Todos os dias, ouvia meu pai — consumidor assíduo de música sertaneja — contar causos. Minha mãe era colecionadora obstinada de livros. Depois da faculdade, eu me arrisquei como atriz e cantora. Minha carreira de roteirista começou quando passei em um teste para protagonizar um filme que, por fim, não saiu da gaveta. Lá conheci o Daniel Ribeiro (diretor do longa Hoje Eu Quero Voltar Sozinho), que me chamou para ser consultora de roteiro da série Todxs Nós, da HBO, com personagens LGBT. A partir daí, deslanchei. Além de Manhãs de Setembro, trabalhei em Noturnos, série de terror do Canal Brasil, e, agora, estou em De Volta aos Quinze, trama teen da Netflix. Quero mostrar mais pessoas trans na TV. Assim como quero trabalhar com temas que vão além da sexualidade.

    Para chegar aqui, passei por bons bocados. Enquanto menino gay, sofri preconceito e fui arrancada do armário quando meu primeiro beijo foi exposto nas redes sociais. O bullying, então, se tornou insustentável. Cheguei a ser amarrada em uma cadeira e espancada na escola. Foi nesse episódio que meus pais souberam da minha sexualidade e, apesar de terem um casal de amigos LGBT, não encararam muito bem de início. Meu pai disse que aceitaria um filho homossexual, contanto que não fosse efeminado. Até o último ano da escola, engoli essa parte feminina de mim. Passei a me entender como mulher aos 20 anos e, aos 21, estava usando hormônios — hoje, ainda bem, meus pais são mais militantes da causa trans que eu. Agora, aos 26, me sinto mais confortável que nunca em minha própria pele.

    Cursei psicologia na Universidade de São Paulo (USP) e, durante meu estágio, notei que preferia ouvir os pacientes no consultório com um olhar narrativo e não clínico. Eu terminava o atendimento e pensava: “Uau, que história”. Optei então por cursar algumas matérias com os alunos de audiovisual — meu primeiro passo para a carreira artística. Fui bem acolhida na faculdade. O problema era entrar e sair dos portões da USP: eu me vestia como homem no transporte público, com medo de ser agredida no trajeto. A faculdade me acolhia, mas também me oprimia, porque eu era a única trans ali. Infelizmente, como roteirista, não é raro sentir o mesmo. Muitas vezes, sou a única trans na sala, e a solidão é forte. Chego até a assumir um papel de educadora para as pessoas ao redor. Mas sou uma só, não respondo por um grupo inteiro de pessoas trans tão diferentes entre si. Ao mesmo tempo, felizmente, vejo o mercado audiovisual cada vez mais preocupado em ter equipes criativas diversas. Em breve não serei mais a única — ainda bem.

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    Alice Marcone em depoimento dado a Tamara Nassif

    Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752

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