Em 1963, quando tinha 23 anos e era uma estudante de letras em Rouen, no noroeste da França, Annie Ernaux passou por uma experiência traumática: o aborto. O drama autobiográfico de sua juventude serve de lastro a O Acontecimento, livro que é daquelas obras insistentemente reduzidas sob o rótulo de “polêmicas”. O que consiste, em si, numa polêmica vazia: o tema central é delicado, mas a autora francesa acerta ao não contornar o problema, atacando-o frontalmente. A narrativa é muito mais que um relato sobre um aborto. Em oitenta páginas, Ernaux descreve de forma pungente e magnética o périplo para interromper sua gravidez indesejada em uma viela de Paris, recria a atmosfera repressiva da época e ainda faz uma lúcida reflexão sobre a validade da autoridade do Estado sobre os corpos femininos. É uma façanha pessoal e literária.
Na época, o procedimento não era legalizado na França e a escritora, assim como qualquer pessoa que a ajudasse, poderia ser processada e presa. “E, como de costume, era impossível determinar se o aborto era proibido porque ruim, ou se era ruim porque proibido. Julgava-se de acordo com a lei; não se julgava a lei”, diz um trecho da obra. Tão brutal quanto a pena era o estigma carregado pelas mulheres que abortavam. Cumprido o período na cadeia, elas recuperavam a liberdade, mas ostentariam para sempre a marca de “assassinas de bebês”.
O medo do estigma talvez tenha motivado Ernaux, hoje aos 81 anos, a esperar quatro décadas para lançar seu livro, publicado na França em 2000 (a tradução chegou somente agora ao Brasil). Ou não: talvez ela tenha aguardado pacientemente para fazer do distanciamento temporal parte do seu projeto literário. A passagem do tempo é uma das forças motrizes de sua obra memorialista, pioneira do gênero literário denominado autoficção. Nos livros de Ernaux, o ato de rememorar o tempo vivido não é apenas uma lembrança, mas uma reconstituição crítica do passado — ou, na definição da autora, uma “autossociobiografia”.
Filha única de trabalhadores de classe baixa, Annie Duchesne (Ernaux é o nome de seu ex-marido, Philippe) sempre se destacou na escola. Sua inteligência e precocidade motivaram seus pais a incentivá-la nos estudos. Formou-se em letras, tornou-se professora e escritora. Ela já tinha três romances publicados, nenhum de grande sucesso, quando lançou O Lugar — obra de 1983 que a fez mudar de patamar entre críticos e leitores. Nesse relato, conta a relação conflituosa com seu pai, um homem semianalfabeto que começa a ver a filha como uma pessoa educada que teria um bom emprego e deixaria a vida que ele sempre quis abandonar, mas nunca conseguiu. Foi nesse livro que a autora, enfim, encontrou a forma e o tom exatos para sua obra: afastou-se da ficção convencional para narrar a própria vida, abolindo propositalmente os limites entre realidade e fantasia.
Em O Acontecimento, a francesa conduz seu experimento ao limite, incluindo até explicações metalinguísticas. “Escrevendo, sempre surge a questão da evidência: além do diário e da agenda do período, acho que não disponho de nenhuma certeza a respeito dos sentimentos e pensamentos, devido à imaterialidade e à evanescência daquilo que atravessa a mente”, narra. “A única memória verdadeira é material.” Assim, deixa transparecer como não só fatos, mas fabulações fazem parte de seu processo criativo.
Somente Ernaux sabe o que é fato e o que é inventado em seus livros. Mas pouco importa: o resultado dessa quimera é magistral. Suas obras têm caráter biográfico e real, mas não abdicam da força da ficção. Na literatura atual, nenhuma autora revela-se tão senhora da própria memória.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.