Quando começou a escrever Os Corações Perdidos, a autora Celeste Ng se viu paralisada diante da ideia de uma trama aparentemente inverossímil. O argumento inicial explorava os laços entre um filho e sua mãe separados pelo governo americano — que de forma arbitrária, imaginava Celeste em sua ficção, passara a perseguir cidadãos de origem asiática. “Notei que esse era um medo pessoal meu, e que ninguém se interessaria por ler isso, pois parecia muito irreal”, disse a escritora a VEJA. Filha de um casal de cientistas chineses e nascida nos Estados Unidos, a autora de 42 anos cresceu acostumada a episódios cotidianos de preconceito em sua maior parte inofensivos, segundo ela. Isso, até a combinação tétrica de 2020: as falas hostis do então presidente americano Donald Trump contra orientais se somaram ao pânico com a pandemia de Covid-19, que expôs a xenofobia sob a desculpa de apontar um culpado — a China. “Vimos um aumento da hostilidade e da violência contra asiáticos no mundo. Uma idosa foi agredida por um homem no centro de Nova York e ninguém ao redor a ajudou”, diz ela.
Os corações perdidos
Tudo o que nunca contei
Seu novo livro, então, passou de improvável a assustadoramente real. Na trama distópica à la George Orwell, Bird é um garoto de 12 anos, filho de uma mulher asiática e um homem branco, que tenta cicatrizar a ferida aberta pelo abandono da mãe. Ele não nota a relação entre o sumiço dela e o clima político sob uma hipotética nova ordem americana — a única que Bird conhece. Pouco antes de o garoto nascer, uma grave crise econômica pôs o país em posição submissa diante da China, abrindo espaço para um regime militar que impôs a austeridade e o patriotismo como regras — institucionalizando o ódio aos asiáticos. Livros de autores orientais foram banidos, a internet se tornou um ambiente controlado e os acusados de atos antipatrióticos passaram a ser perseguidos, caso da mãe de Bird. Em certo momento, o garoto inicia uma busca secreta pelo paradeiro dela.
Pequenos Incêndios Por Toda Parte
Os Corações Perdidos é o terceiro romance de Celeste e sua primeira distopia — sua estreia literária foi em 2014 com o thriller Tudo o que Nunca Contei, que narra a investigação do assassinato de uma jovem asiática. A fama mundial veio em seguida com o best-seller Pequenos Incêndios por Toda Parte, adaptado em série de sucesso com Reese Witherspoon e Kerry Washington, sobre uma mãe solteira negra que bagunça a rotina aparentemente perfeita de um subúrbio branco americano. Apesar de eclética, a obra da autora possui um traço em comum. “Meus três livros lidam com a ideia de não pertencimento étnico, além da relação entre pais e filhos”, diz Celeste. Uma potência oriental contra tempos de intolerância.
Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.