Fábio Porchat: “Jesus é um baita cara legal”
O roteirista e intérprete de Jesus Cristo em 'Teocracia em Vertigem' fala a VEJA sobre o novo filme — e os ataques à obra natalina de 2019
Os especiais de Natal do Porta dos Fundos evidenciam um conhecimento bíblico. Como é sua relação com a Bíblia e a religião? Tenho muito interesse por religiões. Não fui criado em nenhuma, mas visitava cultos e missas com frequência. Sou racional, então me deixa curioso essa coisa da fé de abrir mão da lógica para seguir sentimentos. Para o filme, li o Novo Testamento com cuidado. Mas prefiro o Antigo, que tem histórias muito loucas: animal que fala, gente que corta prepúcio…
A fé cristã é um assunto caro a muitos brasileiros. É correto fazer piadas sobre o tema? Com certeza. O Brasil é um país cristão. Comédia é identificação, você ri do que conhece. Já fizemos piadas com ateu, umbandista, muçulmano — que era um terrorista gay, aliás, e não tivemos problema. Passei o novo roteiro por dois pastores para ver se tinha algo sensível, e eles não mudaram nada. No Porta, temos pessoas de todo tipo de fé. Aliás, acho injusto quando dizem “os evangélicos fizeram tal coisa”. Evangélicos são legais. O termo correto para essa gente é milicianos da fé. São maçãs podres que se valem de Jesus e do sofrimento alheio para enriquecer e se eleger. São os “Crivellas” da vida.
Já teve receio de interpretar Jesus? Que nada, eu adoro! Para mim, Jesus é um personagem, como a Pequena Sereia, Cleópatra… É meio lendário, meio mítico. Eu acho Jesus um baita cara legal, um revolucionário. Há 2 000 anos ele pregava o amor, numa época em que era olho por olho. Um cara que andava com leprosos, prostitutas e parou um apedrejamento. Ele vivia com os marginalizados. Pregou o amor, e não o ódio. Se voltasse hoje, Jesus não voltaria como um homem branco, hétero, cis, europeu. Ele seria uma mulher, seria preto, seria uma minoria. Voltaria para nos ensinar a tolerar o próximo fora do padrão, o diferente. E as pessoas não estão prontas para isso. Fizemos um especial que insinuava que Jesus foi tentado por um demônio gay e jogaram bomba na gente.
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Muitas figuras neste novo especial são associáveis a nomes da política atual. Como foi compor esses personagens? O cuidado foi não personalizar as figuras bíblicas. Jesus não é ninguém. Não é o Lula, nem a Dilma, nem o Bolsonaro. Jesus é uma pessoa julgada e assassinada brutalmente. Eu fugi de comparações literais. Quando tem a cena com o PowerPoint apontando para Jesus, é só uma referência da nossa realidade. Não é um filme de esquerda ou de direita. As vozes mais agressivas são os minions locais. É o que vemos hoje: o cidadão de bem que apoia milícia. Essas incongruências de uma sociedade em um momento bastante peculiar.
Como recebeu a notícia do atentado? Eu estava de férias no México. Não vivi o medo que meus amigos sentiram aqui, nem corri perigo. O que me deixou de fato preocupado foi o silêncio do governo. Se uma pessoa poderosa como o presidente não recrimina um ato dessa natureza, ele passa a mensagem de que não tem importância, de que é permitido.
Por isso o desejo de fazer humor político? Não somos destoantes do que é o Brasil. Nosso interesse pela política cresce na mesma medida em que aumenta o interesse da população. Em 2013, fizemos um esquete com a Dilma, dizendo que a casa caiu e que eles precisavam roubar menos. Depois fizemos outro sacaneando o Lula e um sobre os excessos da Polícia Federal. Esse último causou uma reação mais adversa do público — até que, em 2019, a piada se mostrou verdade.
O que diz aos futuros críticos do novo especial? O brasileiro não gosta de rir de si mesmo, mas do outro. Por isso se sente atingido. No fim das contas, é só não assistir ao filme. Não estamos invadindo igrejas e projetando nas paredes. Vai estar no YouTube. Se quiser, veja; se não, assista à missa, ao culto do Malafaia — que, aliás, para mim é uma piada.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716
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