Em frente ao Retrato da Infanta Margarita, tela do espanhol Diego Velázquez (1599-1660), os jovens Edgar Degas e Édouard Manet, dois nomes que ajudaram a fincar as bases da pintura moderna, se cruzaram no museu do Louvre, em Paris, nos anos 1860. À mão livre, Degas copiava o quadro em uma placa de cobre, observado por Manet, que admirava sua habilidade. Foi o princípio de um relacionamento intenso, regado a altas doses de rivalidade, mas também de aprendizado mútuo. Cada qual pincelaria depois a sua própria infanta, filha do rei Felipe IV da Espanha, em uma jornada que se iniciou com a imitação e levou à pura beleza.
A ideia de que, na arte, um mestre vai se inspirando no outro, e daí surgem as mais sublimes obras de arte, é universalmente assimilada. A resistência está em ver valor no ato de copiar — justamente o ponto de partida para, não raro, se produzir algo inteiramente novo. É este o debate que levanta a recém-inaugurada exposição Nos Limites da Criatividade: Cópias, Versões, Pastiches e Falsificações, no Museu do Prado, em Madri, que enaltece até artistas que, em gesto de profundo esmero, replicaram ipsis litteris quadros geniais, e pararam por aí.
A mostra se concentra em grandes mestres do Renascimento italiano, um prato cheio para posteriores imitações. Elas estão exibidas na sala 40 do Prado, onde, a partir de agora, sempre serão trazidas aos olhos do público obras que acumulavam pó no depósito. Alguns exemplares chamam atenção pela perfeição da réplica, caso de O Amor Sagrado e o Amor Profano, de Ticiano (1488-1576), o grande renascentista veneziano. No século XIX, o espanhol Manuel Ramírez Ibáñez, um exímio copista, reproduziu a tela com tamanha precisão que não deixou passar nem a sujeira que o tempo se encarregou de acumular na obra, detalhe refeito na cor âmbar. As versões, também destacadas pelos curadores da exposição, dão um passo além, seguindo o estilo do artista, mas ousando ao adicionar ou subtrair elementos das composições. Ocorreu com o italiano Luca Giordano, outro especialista da imitação, que executou com exatidão A Sagrada Família com San Juanito, do celebrado Rafael (1483-1520), mas lhe fez uma Virgem diferente. Em nenhum dos casos, é bom lembrar, se trata de falsificação, quando o objetivo é tão somente enganar o espectador, e não provocá-lo com o que é belo.
A coleção de cópias do Prado foi, em boa parte, herdada dos Habsburgo, uma das mais influentes famílias da nobreza europeia, que reinou também na Espanha. Como as demais realezas, eles cultivavam, do século XVI em diante, o hábito de encomendar réplicas de prestigiados artistas da época. Isso virou moda no século XIX, uma vez que os nobres gostavam de se presentear com obras de arte, um agrado de conotações diplomáticas. No que uma preciosa tela era ofertada a alguma corte, o rei ordenava instantaneamente sua cópia, de modo a ter aquela imagem eternizada na parede. “Embora o original fosse preferível, naquele tempo as cópias eram muito bem-vistas”, lembra a psicóloga da arte Ellen Winner, do Boston College, nos Estados Unidos.
Outro empurrão às reproduções veio de prestigiadas academias de pintura, que adotavam o exercício de imitar o trabalho alheio como método essencial para o aprendizado. “Entendia-se que a cópia não só requeria talento como também estimulava o desenvolvimento de um estilo individual”, explica Ana González, a curadora da exposição no Museu do Prado. O advento dos museus, que se espalharam pela Europa, ampliaria ainda mais o acesso dos novatos aos mestres. As réplicas que ali produziam acabaram por contribuir para a disseminação do melhor da expressão artística. Antes delas, numa era pré-redes, quem teria a chance de apreciar um Ticiano ou um Rafael, ainda que não no original?
A valorização da originalidade, aliás, é um conceito relativamente recente. Em seus elevados cursos de estética, o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831) afirmava que o fim do século XVIII havia dado início ao “período dos gênios”, marcado na arte pela quebra da ordem classicista e por uma renovada liberdade de criação. A tendência ganhou vulto com o romantismo, movimento que floresceu no século XIX, em paralelo à sequência de intensas mudanças sociais provocadas pelas revoluções industrial e francesa. Os românticos procuravam então libertar-se de princípios preestabelecidos em nome da autonomia e da expressão individual, alimentando a ideia da genialidade, que se expandiria exponencialmente e depreciaria o valor das cópias.
Quanto mais admirada era uma obra, mais réplicas apareciam dela — lógica que hoje move um profícuo mercado de falsificações. O final do século XIX registrou uma onda de cópias de El Greco (1541-1614), oferta que acompanhava o frenesi em torno do artista maneirista que nasceu em Creta e chegou ao ápice em solo espanhol. O seu Adoração dos Pastores tem uma imitação, agora no Prado, que reproduz inclusive uma figura adicionada à tela em uma data posterior à morte do artista, encoberta por camadas de tinta. “A originalidade é um conceito ilusório, estamos sempre nos inspirando no que veio antes”, enfatiza o historiador da arte Felipe Martinez, pesquisador da Universidade de Amsterdã.
Num desses sopros de inspiração, Paul Gauguin (1848-1903) observou atentamente o polêmico Olympia de Manet, quadro banido do salão oficial de Paris por retratar a nudez de forma não idealizada, e produziu a sua própria versão, com a personagem central negra. Interessado no famoso As Meninas, de Velázquez, de 1656, Pablo Picasso (1881-1973) a reinterpretou em 58 telas de cores vibrantes e formas desconstruídas, como tanto gostava. São todas amostras de como o princípio da imitação, quando extrapolado, pode levar a manifestações de apuro técnico, criatividade e beleza.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853