Eu sobrevivi ao Rock in Rio
A epopeia de um adolescente em meio a uma overdose de lama e de metal pesado
O mundo era em preto e branco para os roqueiros nacionais quando chegou por aqui, na metade dos anos 80, a notícia de que algumas das maiores bandas do planeta iriam dar as caras no país para um festival de verão. Depois de décadas de uma dieta miserável em termos de atrações gringas, os fãs ganhavam ali, num passe de mágica, um passaporte para um mundo muito mais colorido – e barulhento.
Era uma notícia tão boa que a ficha demorou a cair. Parecia fake news na época em que ninguém usava esse termo em inglês para definir uma lorota propagada pela imprensa. Afinal, naqueles tempos, o Brasil estava tão distante da rota internacional do showbiz quanto o Palmeiras do título mundial. É verdade que algumas bandas até arriscavam tocar nos trópicos, como o Genesis e o Queen, mas não passavam de raros cometas. A dura realidade era de um céu sem estrelas.
Essa demanda represada era tanta que os fãs topavam até encher ginásios para ver bandas de segunda linha, como o Quiet Riot, ou pagavam para ver astros amargando um período tenebroso, a exemplo do cantor Joe Cocker. Tamanha a crise de abstinência que, no caso de São Paulo, na falta de grandes apresentações, as pessoas compravam ingressos para ver sessões de shows internacionais exibidos em fitas VHS pirateadas numa sala apertada na Faria Lima, anos luz de a avenida tornar-se conhecida pelos cifrões dos bancos de investimento.
Tudo começou a mudar quando chegou por aqui a notícia estrondosa do primeiro Rock in Rio. Imediatamente, os roqueiros começaram a esfregar os olhos, mal acreditando no tamanho do negócio. Um grupo no auge tocando no país era raro, quanto mais vários deles reunidos no mesmo festival. Para os fãs de bandas pesadas, que viviam um grande momento de popularidade, dentro de um renascimento do gênero batizado de new wave of british heavy metal, o cardápio era fartíssimo: Iron Maiden, Whitesnake, Ozzy Osbourne, Scorpions e AC/DC.
PEPEU E BABY CONSUELO NA ABERTURA
Com 15 anos na época, tornei-me testemunha ocular dessa história. Escolhi justamente a noite em que vários desses grupos especializados em guitarras distorcidas e vocais esganiçados iam se apresentar. Embarquei para lá em São Paulo em um ônibus de excursão, no esquema bate-e-volta. Foi a epopeia de um adolescente em meio a uma overdose de lama e de metal pesado. Na chegada ao local do show, que era em Jacarepaguá naquele ano de estreia do evento, a turma atravessava rapidamente o terreno transformado em barro puro e escorregadio pelas chuvas para chegar o mais perto possível do palco – e das potentes torres de som.
A abertura do show, que ficou conhecido como a noite dos metaleiros, começou de forma soft, a cargo de artistas nacionais. Apesar da importância de gente como Pepeu Gomes e Baby Consuelo, a verdade é que ninguém deu muita bola para esse começo. A parte principal, felizmente, apareceu rapidamente diante de nossos olhos. De forma a evitar grandes intervalos entre as apresentações, o palco girava trazendo para a frente os artistas escalados para a sequência. Aí a coisa começou a ficar realmente séria.
Inesquecível a lembrança da gigantesca bateria de Cozy Powell surgindo diante de nossos olhos, com pratos reluzentes e o estrondo provocado por ele na primeira batida, dando início ao show do Whitesnake. Outro momento memorável foi o som do órgão imponente e fantasmagórico introduzindo a abertura de Mr. Crowley, um dos sucessos de Ozzy Osbourne. A noitada terminou com canhões eletrônicos disparados pelo AC/DC, uma tradição que a banda repete até hoje quando toca For Those About the Rock (We Salute You).
Exausto e com as calças e tênis cobertos de lama jacarepaguana, voltei para São Paulo feliz da vida e com o ouvido zunindo. Quem teve o privilégio de ver aquele Rock in Rio por inteiro ainda curtiu shows como os do Yes, que havia deixado o som progressivo para uma pegada mais pop e estava nas paradas com Owner of a Lonely Heart.
Sabemos que as memórias musicais da adolescência representam um atalho traiçoeiro para o abismo da nostalgia pura. Também é fato que o Rock in Rio evoluiu tremendamente ao longo das décadas enquanto negócio e acontecimento cultural, mérito absoluto do visionário Roberto Medina, o empresário que criou o festival.
Mas não há discussão a respeito de qual foi o melhor Rock in Rio da história. Naquele inesquecível verão de 1985, havia rock de verdade em quantidades para lá de generosas e um sabor de ineditismo e de ousadia que jamais será igualado no evento.