Os desfiles da Givenchy, cuja criatividade hoje é costurada pelo prodígio americano Matthew Williams, costumam ser cercados de muita expectativa. Na semana de moda de Paris, encerrada na terça-feira 5, o que era para ser uma celebração de bom gosto e inventividade virou escândalo. A maison francesa levou para a passarela modelos que usavam colares de metal com a forma de um nó de forca. Outras desfilaram com olheiras avermelhadas e olhos fundos e pretos, em evidente postura depressiva. Quase todas magérrimas, na contramão da diversidade que se espera atualmente, com corpos razoavelmente comuns. Se a ideia era chamar atenção, e o mundo do luxo é movido a esse tipo de recurso, foi tudo muito bem-sucedido, sim. Mas não há dúvida: a grife errou a mão, e feio. Nas redes sociais houve uma onda maciça de protestos contra o show.
A acusação: apologia indevida e exagerada à magreza, atrelada à anorexia, com barriga, colo e ossos à mostra. Houve ainda quem identificasse culto ao suicídio. “Além da diversidade, há a tendência do body positive, que celebra a beleza e a aceitação do corpo como ele é, sem padrões estéticos”, diz a caçadora de tendências e futurista Sabina Deweik. “É um movimento que precisa ser perpetuado. A alta-costura tem o papel de lidar com as grandes questões da humanidade, e a saúde mental é uma delas.” Procurada por VEJA, a Givenchy preferiu não comentar. Pegou muito mal, especialmente em um cotidiano mergulhado na pandemia, e não por acaso a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem feito sucessivos alertas em torno do impacto prolongado em corações e mentes como reflexo da maior crise sanitária da atualidade. A moda é um retrato de seu tempo — e também nesse aspecto a Givenchy atropelou a realidade.
“A moda traz para si o papel de provocar e subverter, mas nada justifica essa atitude, ainda mais nos tempos atuais”, diz a stylist e consultora de estilo Manu Carvalho. Para o coordenador da campanha nacional “Setembro amarelo” e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, o fato é gravíssimo. “A glamorização do suicídio em um evento tão globalmente celebrado é uma tragédia”, diz Silva. “É vergonhosa a atitude da marca, que tem influência mundial principalmente entre os jovens. Quantas adolescentes vão se vestir dessa maneira?” Segundo a OMS, a cada quarenta segundos uma pessoa comete suicídio no mundo — é a segunda maior causa de morte entre 15 e 29 anos. Os dois principais fatores de risco são tentativa prévia e doença mental, muitas vezes não diagnosticada, não tratada ou tratada de forma inadequada. A prevenção do suicídio inclui combater o estigma — responsabilidade que é de toda a sociedade e também da marcas reconhecidamente elegantes e influentes.
Não é a primeira vez que os desfiles saem do tom. Nos anos 1990, revistas celebravam o estilo heroin chic, com modelos fotografadas com aparência muito magra e de drogada. A questão chegou à Casa Branca, com críticas do então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Em fevereiro de 2019, a Burberry foi acusada de apologia ao suicídio ao desfilar um moletom com capuz que trazia uma corda também em forma de forca. “Suicídio não é fashion”, escreveu no Instagram a modelo Liz Kennedy, que usou a peça, reclamou nos bastidores, mas foi ignorada. Em setembro daquele ano, a Gucci fez um desfile com macacões brancos que remetiam a camisas de força. Na passarela, Ayesha Tan-Jones, ativista e modelo não binário, fez um protesto e escreveu na palma das mãos: “Saúde mental não é fashion”. Definitivamente não é.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759