Era uma ensolarada terça-feira de carnaval em 2019, quando o abre-alas da Mocidade Independente de Padre Miguel despontou na Marquês de Sapucaí após uma longa noite de desfiles. No centro da alegoria sobre Cronos, o Deus do tempo na mitologia grega, quem chamava atenção ali, em um trono rodeado por uma estrela em neon, era outro Deus, ou melhor, Deusa: Elza Soares. Antes do início oficial do desfile sobre o tempo, um anúncio aguardado há anos pelo mundo do samba veio à tona: a escola confirmava ali que Elza finalmente seria homenageada pela sua Mocidade no carnaval seguinte, em 2020. A Sapucaí veio abaixo. Após uma relação de idas e vindas, Elza e a Mocidade finalmente haviam reatado. O tempo passou, e assim, no ano seguinte, no último carnaval antes da pandemia do novo coronavírus, Elza teve sua vida e obra contadas em um desfile à altura de sua trajetória, que acabou em um honroso terceiro lugar. Para 2022, uma nova homenagem estava sendo preparada para a maior estrela da Verde e Branco de Padre Miguel.
Aos 91 anos, Elza morreu no mesmo dia da maior paixão de sua vida, Mané Garrincha — e no mesmo dia de Oxóssi, o orixá da caça e da fartura, enredo da Mocidade para o carnaval 2022. A homenagem a Oxóssi fez Elza entrar pela primeira vez na disputa de samba-enredo da escola na condição de compositora. A competição, aliás, mais parecia um festival de MPB ao reunir nomes de peso da música nacional, como Sandra de Sá, Mariene de Castro e Carlinhos Brown — Brown acabou sendo o vencedor, em uma disputa transmitida pela TV Globo. Elza teria ficado chateada com a derrota? “Elza amou o samba do Carlinhos”, diz um amigo.
O carnaval na Sapucaí é guardado a sete chaves, ainda mais quando se trata de uma escola cotada para o título, como a Mocidade, mas VEJA apurou que o carnavalesco Fábio Ricardo preparava encerrar o desfile com a “cantora do milênio” como destaque da última alegoria da escola. Isso porque o último setor do enredo “Batuque ao caçador” é uma homenagem à bateria da Mocidade, que desde a sua criação reverencia Oxóssi com sua batida única. Bateria eternizada no samba “Salve a Mocidade”, clássico cantado por Elza. A morte de Elza fez a escola mudar os planos — mesmo sem a sua estrela, a escola vai homenagear a cantora na Avenida. A Deusa da Vila Vintém não será esquecida.
“O enredo de Oxóssi só existe porque existiu antes o enredo da Elza Soares, que já falava da bateria e do Mestre André (lendário mestre de bateria da escola, inventor das paradinhas). A importância de Elza Soares para a cultura popular do país, para o feminismo, para as conquistas da mulher brasileira, a gente não precisa nem dizer. Ela é revolucionária desde o primeiro dia em que nasceu. O nascimento dela já é uma revolução, o crescimento outra revolução”, resume o jornalista Fábio Fabato, biógrafo da Mocidade que fez a sinopse dos enredos sobre Elza e Oxóssi. “Além de tudo, para a música brasileira, Elza foi uma voz única, visceral, e para a Mocidade Independente, a sua filha mais ilustre, homenageada em vida. E pra completar morre no dia do seu grande amor, Garrincha, que é o dia de Oxóssi e São Sebastião, próximo enredo da Mocidade. Parece uma espécie de passagem de bastão.”
A morte de Elza fez a Mocidade decretar luto de três dias e cancelar o ensaio previsto para este sábado, 22. Como cantou a agremiação de Padre Miguel em 2019, no enredo que começava com Cronos e Elza rodeada em neon: “Tempo que faz a vida virar saudade/ Guarda minha identidade/ Independente relicário da memória”.