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Elisa Lucinda: ‘Não haverá revolução sem artistas, negros e mulheres’

Em entrevista a VEJA, escritora e atriz fala sobre sua produção literária, a carreira no teatro, as dificuldades de artistas negros e a eleição de Bolsonaro

Por Ana Carolina Avólio, Diego Andrade Atualizado em 28 jun 2019, 21h37 - Publicado em 28 jun 2019, 19h54
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  • Escritora, atriz, poeta, jornalista e produtora cultural. Mas é com a literatura que Elisa Lucinda tem sua relação mais antiga. Aos 11 anos, começou a frequentar aulas de declamação de poesia, onde descobriu o amor por tecer versos. O afeto pela palavra se expandiu para outros gêneros, como infantil e romance, e se consolidou em dezoito livros publicados, em variadas casas editoriais do país, como Record e Global. O mais recente deles, Livro do Avesso, é seu primeiro título na Editora Malê, que chegou ao mercado com a proposta de lançar obras de autores negros. “Não tem mais como seguir sem olhar para o que o povo negro produz”, afirma Elisa. Em entrevista a VEJA, a escritora e atriz falou sobre sua produção literária, a carreira no teatro, as dificuldades da produção de artistas negros no país e o governo de Jair Bolsonaro.

    Você diria que a Edite, protagonista do Livro do Avesso, é inspirada em você? Como surgiu essa personagem? Sim. Ela surgiu naturalmente, foi um dos milagres que a própria literatura realiza. Você cria um tecido que vai se fazendo por si – a escrita é uma coisa têxtil, são palavras que formam linhas, que formam tecidos de palavras e depois formam a estamparia, que é o discurso. Um dia eu escrevi: “Toda vez que passo na frente do Hospital Santa Mônica meu coração bate assim: ‘Minha mãe morreu, minha mãe morreu aqui, minha mãe morreu, minha mãe morreu aqui’”. Na próxima linha, escrevi: “Ai, Edite, Edite, isso já faz vinte anos, você parece que não cresceu?!”. E eu pensei: “Que nome ótimo! Uma voz falando para a minha personagem, chamando ela de Edite, um nome tão popular!”. Eu queria estar vivendo como ela, as observações que ela faz, o olhar que ela tem pela vida, muito otimista e justa. Ela não tem nenhuma bandeira, ela não fala nenhuma vez contra homofobia, por exemplo, mas defende as relações LGBT em várias histórias. 

    O livro parece uma junção de pequenos pensamentos e ideias que foram surgindo e sendo anotadas. Como chegou a esse formato? Eu estava escrevendo O Cavaleiro de Nada, que é um livro super robusto e me exigiu muita pesquisa. Era uma pequena biografia do Fernando Pessoa e eu acabei fazendo como se fosse ele falando, em primeira pessoa. E a editora me cobrando prazos. Então, no desespero, comecei a escrever no bloco de notas (do celular), que eu batizei de Avesso. Ali fui colocando qualquer pensamento, o mais estapafúrdio, absurdo, qualquer pensamento que passa pela cabeça da gente e a gente tem certeza que ninguém vai ler. Eu anotava número um, dois, três, não tinha título. Quando já tinha escrito quinze observações, histórias, eu percebi uma certa singeleza na escrita.

    Como começou sua trajetória na poesia? Aos 11 anos, minha mãe me botou para estudar declamação no Espírito Santo, então quando cheguei no Rio de Janeiro, aos 28, eu conhecia muitos poemas. Uma vez fui a um encontro de poesia na praia e, enquanto todo mundo pegava megafone e papel para ler, falei de cor e todo mundo achou demais como eu falava de um jeito coloquial. Antes de eu estrear no teatro, me chamaram para bares, para pocket shows de poesia e música. Comecei a viajar o Brasil. Quando fiz a novela Mulheres Apaixonadas (2003), que bombou na época, eu tinha esses meus leitores que tinham me visto apresentar em outras cidades, então isso deu muita visibilidade ao meu trabalho. Algumas pessoas chegavam com os meus livros, que eu fazia à mão, em casa, costurado. Tudo que eu fiz no cinema e no teatro veio do meu chão, que é a poesia. Tinha uma coisa ali para ser ouvida, na minha poesia, e acabei virando uma referência para a juventude, especialmente a juventude negra brasileira. Acho que sou uma voz feminina de liberdade, muitas mulheres se identificam com meu trabalho.

    Como é sua rotina para escrever? Precisa de um tempo afastada dos palcos e das telas para isso? Eu sou concomitante. O mar não para de bater para ninguém viajar, o vento não para de soprar para alguém bordar, né? Tudo acontece ao mesmo tempo. Tem cinco filmes meus que vão ser lançados entre esse ano e o próximo e durante o tempo que fiz tudo isso, eu estava lançando livro, viajando em cartaz com peça e fazendo novela. Eu tenho feito tudo, graças ao Deus eu gosto de fazer ao mesmo tempo.

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    A Editora Malê, que lançou seu livro, tem como objetivo publicar obras de autores negros. Como você acha que a representatividade no mercado editorial pode influenciar a representatividade na sociedade como um todo? É importantíssimo porque a literatura tem um histórico imenso de vozes que escrevem por outras vozes. Por muito tempo homens brancos escreveram por todas as pessoas, inclusive pelas mulheres, que não podiam nem pensar em estudar. Depois, as mulheres começaram a escrever, mas as brancas, (que escreviam) inclusive sobre as negras. Nós mulheres negras tivemos muita dificuldade em ser incluídas e vistas pela literatura. Agora nunca se viu tanta literatura negra no mundo. Nas redes sociais, a gente lê filósofos negros, feministas negras, o pensamento negro está crescendo. Mas mesmo assim, Conceição Evaristo só ficou conhecida recentemente, ao chegar na casa dos 70 anos. Ela é uma lutadora, escreve há tanto tempo. O que aconteceu? Não produziu? Produziu. Ninguém viu? Não, não viram, há uma invisibilidade com o trabalho feito por pessoas negras. Isso é tudo menos “mimimi”. A sociedade brasileira agora que parou para pensar sobre racismo e estamos falando de um racismo que existe há muito tempo. Esse tempo é nosso, é um tempo que não tem mais como seguir sem olhar para o que o povo negro produz. Foram 400 anos de tortura, tráfico de pessoas, assassinatos nas senzalas, tudo isso sem punição. Todo negro aqui tem que provar que não é ladrão, toda hora ele poderia ser confundido com alguém que está portando uma arma. 

    O governo de Jair Bolsonaro tem promovido uma série de cortes na cultura, como o fim do patrocínio das estatais e as mudanças na Lei Rouanet. Como vê esse panorama? É uma falta de visão, uma ignorância do governo que assassina o país. Um governo que não olha para a sua educação é um governo que não tem amor pela nação. É um governo que é referenciado em Jesus, porque tem essa pegada religiosa no discurso, no entanto assassina o futuro de um país desse jeito. O Brasil é uma sociedade complexa, que esse governo despreparado não tem condição de ler. Os cortes na cultura são na verdade golpes contra o país. Realmente espero que esse pesadelo não demore a passar. Considero que a democracia vive uma prova das mais violentas. E acho que a nossa esquerda precisa juntar suas bases. Faço vários trabalhos sociais e não encontro lá a esquerda, só eu. Quem está lá é a igreja evangélica. Acontece a tragédia de Brumadinho e quem está lá é a igreja evangélica. Ela faz esse amparo e aumenta seus fiéis. Mas acredito muito num país melhor que esse porque tem o Brasil novo, que é o Brasil que entrou na universidade pelo sistema de cotas, por inclusão. Há índios antropólogos, negros filósofos, sociólogos. Acredito que essa juventude, essa nova força que entrou na universidade e nunca tinha entrado antes, mudou o jogo.

    Já usou leis de incentivo para algum projeto? Teme que algum projeto seu não saia do papel por causa disso? Usei três vezes na minha vida. Temo e não temo. Temo porque é um incentivo importantíssimo, e não é o que as pessoas pensam. É um imposto investido na cultura. Essa grana faz falta e o artista é aquele cara que trabalha na hora que todo mundo vai descansar, trabalha com filho com febre, com diarreia… Não deixem falar mal dos artistas, tadinhos. Nós somos missionários. Ao mesmo tempo, não temo porque liberdade é como água, como diz o Manoel de Barros. A liberdade caça jeitos de sair, como a água. Assim é a arte: nunca conseguiram acabar com ela. Os artistas sempre trabalharam, inclusive de graça. A gente tem experiência em remar contra a maré, da mesma maneira que um negro encontra todas as portas fechadas sempre. Todo nosso trabalho é dobrado, meu trabalho é dobrado em relação ao de uma pessoa branca. Toda pessoa negra é especialista, na sociedade brasileira racista, em achar alternativas, em julgamentos preconceituosos antes de você abrir a boca, em viver na berlinda, com um detector de metais pronto para te parar. Mas não se fará nenhuma revolução sem os artistas, sem os negros, e também sem as mulheres, que todos os dias têm um projeto novo de libertação porque foram massacradas pelo machismo. 

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    Por que você acha que surgiu esse movimento contra a classe artística e a cultura? Muitos artistas não se furtaram ao seu papel educacional. Nos livros que você leu que não são da faculdade, nos filmes que você viu, nos programas de TV… Quanta coisa a arte educa sem ser chamada de escola? E é. Naquele momento, em que a democracia estava sendo ameaçada, os artistas conscientes abriram sua boca para defender a nação, quando viram que ia ganhar a bancada da bala, do agrotóxico, do boi e da Bíblia, quando viram que o negócio estava organizado. Foi isso que os artistas com alguma lucidez viram e saíram à luta para fazer seu papel patriótico, mais patriótico do que quem disse que é. Foi uma responsabilidade artística e de cidadania o que a gente fez. O preço é esse, uma política antiga, conservadora e demodê, até os próprios conservadores estão assustados. Essa vingança, essa ignorante ação contra os artistas, é mesmo uma reação ao nosso posicionamento.

    O que dizer sobre artistas que votaram em Bolsonaro? Eles se equivocaram. Com a narrativa antipetista que muitos jornalistas e muitos meios de comunicação assumiram, e assumiram irresponsavelmente porque era a todo custo ser anti-PT, muita gente por ingenuidade acreditou que haveria mudança e entrou de gaiato no navio. Está claro, tem gente boa equivocadíssima. Muita gente já sacou e está envergonhado. Acho bonitinho, acho legal errar e entender que entrou no barco furado. 

    Você está em cartaz com a peça Parem de Falar Mal da Rotina há dezessete anos. Por que decidiu fazer uma defesa da rotina? Como ela pode ser boa? Eu não estou gostando da minha rotina, estou cansada, quero ficar mais no Rio, ter mais tempo para namorar. Mas ela é fruto de nossas escolhas, ela não vem e acaba com o casamento de ninguém, ela sozinha não faz nada. Se você faz um curso, namora, você tem um mapa feito pelo seu desejo, desejo de se casar, namorar, ter filhos etc. O mapa do seu deslocamento deveria refletir seu desejo, a rotina deve ficar mais próxima o possível do que a gente quer, para que haja o máximo possível de prazer. O cotidiano pode ser tratado como uma repetição, mas ele não se repete, é mentira. 

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    Você poderia falar mais sobre o projeto Versos da Liberdade, que desenvolve na Casa-Poema, instituição que fundou? A gente presta esse tipo de serviço através da poesia, fazendo um trabalho de poesia falada e despertando cada um para seu próprio discurso. A maioria da população marginalizada tem dificuldade em relação às palavras e sem palavra é difícil ter cidadania. A Organização Internacional do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho identificaram que muitas pessoas que vão saindo da cadeia, que vivem em abrigos, ficam reprovadas em entrevistas de emprego, mesmo que elas estejam tecnicamente preparadas. A ideia é que a palavra faça com que a pessoa possa cuidar mais de si, dos seus direitos, podendo se apresentar numa entrevista de emprego. 

     

     

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