O oncologista Drauzio Varella começou a trabalhar como médico voluntário na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, em 1989, e durante estes anos acumulou experiências sobre o sistema carcerário que deram origem a uma trilogia literária formada por Estação Carandiru (1999), Carcereiros (2012) e, agora, Prisioneiras (Companhia das Letras, 232 páginas, 39,90 reais), livro que chega às lojas com histórias de mais de uma década de trabalho no presídio feminino da capital paulista.
Em Prisioneiras, o médico dá voz às mulheres que vivem atrás das grades e que já atendeu por 11 anos como voluntário na Penitenciária Feminina da Capital, única parte restante do complexo demolido após o massacre de 1992. Com um texto ágil e didático, Drauzio Varella exibe as particularidades do universo e da rotina das presas, em relação a trabalho, relação com a família, homossexualidade, o machismo latente na sociedade dentro e fora das celas, as semelhanças e dessemelhanças em comparação com um presídio cadeia masculino e, principalmente, a influência do Primeiro Comando da Capital (PCC) sobre a população carcerária.
A facção que hoje controla grande parte das cadeias brasileiras não existia na época em que o médico começou a trabalhar no Carandiru, já que foi o massacre de 1992 que incentivou a sua criação. A ela, Drauzio atribui uma redução na violência dentro e fora do sistema penitenciário. “Você tinha naquela época várias facções, mas nenhuma que dominasse. Havia muita brutalidade entre os presos. No Carandiru era esfaqueamento, ataque com água fervente, uma barbárie que não era diária, mas que emergia com bastante frequência. Agora, a barbárie acabou”, conta em entrevista a VEJA. Fora das cadeias, segundo ele, a diminuição da violência pode ser comprovada pela queda no número de homicídios no Estado de São Paulo. “Quem consegue conter isso é o crime organizado, porque ele proíbe que saiam matando. Você não pode matar ninguém no seu bairro sem autorização, ou você morre. Não pode matar a sua mulher se descobre uma traição.”
A alma do livro está nas histórias individuais de várias presas e no que as levou para trás das grades. São os mais diversos passados e personalidades que o médico explora, das centenas de prisioneiras que conheceu durante os atendimentos. “Tem que ter um cuidado porque estou ali como médico, não ouvia essas histórias como juiz ou investigador. A dificuldade era escrever de um jeito que não desse para identificar a pessoa. Ela está contando para um médico, na qual ela confia.”
Confira abaixo a entrevista completa com Drauzio Varella:
O senhor já tinha uma larga experiência no sistema penitenciário quando começou a trabalhar no presídio feminino. O que viu e aprendeu de diferente? A maneira como as mulheres se organizam quando são confinadas. Uma organização completamente diferente da masculina, embora você tenha leis gerais — não pode delatar, não pode agredir companheira — a todas as cadeias. As mulheres levam muito em consideração os filhos. Isso cria um tipo de solidariedade, pois todas sofrem com a separação deles. O homem nesse sentido é muito desprendido. Vai preso e sabe que uma mulher vai cuidar dos filhos dele. A mãe sabe que ninguém é capaz de substituí-la, que os filhos vão sofrer com a ausência dela e com as consequências disso, muitos serão submetidos a violência, outros ficarão em instituições governamentais ou adotados e ela vai perder completamente o contato com a criança. Isso gera uma solidariedade entre as mulheres que não existe entre os homens.
Quais as principais mudanças que o senhor percebeu nas prisões, entre a época que trabalhava no Carandiru e hoje, no presídio feminino? Quando comecei no Carandiru, em 1989, as prisões eram completamente diferentes, e o Brasil também. Você tinha várias facções, mas nenhuma que dominasse. Havia muita violência entre os presos na cadeia. No Carandiru era esfaqueamento, ataque com água fervente, uma barbárie que não era diária, mas que emergia com bastante frequência. Agora, a barbárie acabou, não tem agressões. Desde que eu estou na penitenciária, são 11 anos, eu não posso dizer com segurança que houve uma morte. Às vezes, falam que deram cocaína em dose excessiva e a presa morreu de overdose. Mas violência, esfaquear, sufocar, enforcar nunca aconteceu nesses 11 anos. Hoje, as cadeias vivem mais em paz. Por outro lado, obedecem a ordem da facção dominante.
No livro, o senhor indica que o PCC teve influência na queda da criminalidade no Estado de São Paulo. Poderia explicar melhor isso? O governador acha que não, que foi pelo policiamento. Nos anos 1990, o índice de homicídio no Estado de São Paulo era de 60 por 100 000, um número altíssimo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que mais do que 10 por 100 000 é inadmissível. Hoje, São Paulo tem 8,75, segundo a última estatística. Você diz ‘Puxa, diminuiu muito’, e as autoridades dizem que foi pelo aumento do policiamento, mas o número de assaltos e furtos aumentou, algo que o policiamento também conseguiria diminuir. E, em se tratando de homicídio, há casos que a polícia não consegue conter. Você tem crimes passionais, tem o cara que está bêbado e briga no bar. Quem consegue conter isso é o crime organizado porque ele proíbe. Você não pode matar ninguém no seu bairro sem autorização ou você morre. Você não pode matar a sua mulher se descobre uma traição, porque é proibido.
É possível acabar com o PCC? Sempre é, mas eu acho, neste momento, que isso não vai ser conseguido com uma medida específica. É muito difícil. Você tem anos de organização do crime. O Estado de São Paulo esteve o tempo inteiro tentando combater e a facção está aí hoje até com uma força política. É possível acabar, mas isso não será conseguido no curto prazo nem com uma medida única.
O senhor assiste a Orange Is the New Black? Não. Eu não quis assistir para não interferir no livro. Quando eu escrevi Estação Carandiru, não quis ler Recordações da Casa dos Mortos (de Fiódor Dostoiévski), nem A Ilha de Sacalina, de Tchékhov, que são sobre prisões. Eu fui ler depois. Você lê obras de autores geniais, como esses dois, e é difícil não se deixar influenciar. Mas agora eu tenho vontade de ver a série sim. Não sei absolutamente nada sobre ela, só ouvi as pessoas falando.
Há planos para Prisioneiras ganhar uma adaptação para o cinema ou a televisão como Estação Carandiru e Carcereiros, que a Globo ainda irá exibir? Várias pessoas me procuraram para comprar os direitos de adaptação, mas eu não vou fazer isso, pelo menos por enquanto. Você escreve um livro, e esse livro tem um caminho. Se você começa a já pensar em adaptação, você desvirtua o livro. Eu não quero isso, quero deixar as coisas correrem naturalmente.
O que precisa ser mudado no sistema carcerário brasileiro? Não tenho a menor ideia. Eu acho que todas as medidas são paliativas. Nós estamos lidando com as consequências, não com as causas. As causas estão lá atrás na infância abandonada, na violência urbana, no tráfico, nas famílias desfeitas, na falta de oportunidades, de escolas decentes, de campos de futebol e ginásios esportivos para as crianças da periferia. Aí, que você faz? Você aprisiona, e aqui se aprisiona muito. O Brasil é o quarto país do mundo em número absoluto de prisioneiros, perde para a China, Rússia e Estados Unidos, que são muito mais populosos. Dizem por aí ‘no Brasil ninguém vai preso’, mas vai um moente de gente presa. Nós temos 650 000 nas cadeias hoje, um número muito grande.
E na relação da sociedade brasileira com seus presos e ex-presos, o que poderia mudar? A sociedade tem que entender que o aprisionamento é a única coisa que a gente sabe fazer. Eu também não saberia fazer diferente, porque quem cometeu crime tem que ser tirado das ruas, não pode ficar aí na esquina assaltando quem trabalha. Tem que ser realista a ponto de dizer ‘Bom, o que estamos fazendo é a polícia enxugar gelo, estamos prendendo, mas não vai acabar a violência’. Não pode ter essa ideia simplista de que se prender todo mundo vai acabar a violência. Primeiro, porque não dá para prender todo mundo, é muita gente e o custo é altíssimo. Para acabar com a superpopulação nas cadeias, seriam necessários bilhões de reais só para construir presídios, depois tem que contratar gente e custear todos os gastos que uma cadeia pode dar. O aprisionamento é um recurso, o único que a gente tem, para tirar um criminoso da rua. Nós tínhamos, nos anos 1990, 90 000 prisioneiros, hoje são 650 000. E melhorou? Nossas cidades ficaram menos violentas? Pelo contrário, a violência se disseminou por cidades antes consideradas pacatas como Maceió, Recife, Fortaleza e Natal.
Qual foi o momento mais difícil do seu trabalho voluntário na prisão feminina? Não sinto que eu tenha tido um momento difícil. O maior problema era atender tanta gente em um tempo limitado, pois chego de manhã e saio no começo da tarde. Tem que atender 20, 30 pessoas, e não é uma tarefa fácil.
Você pretende levar o seu livro para as presas? Isso é obrigatório. Elas sabem que está sendo escrito um livro e uma boa parte delas espera com ansiedade. É impossível dar uma cópia para todas, pois são 1 200. Estamos estudando ainda como fazer. Tem uma coisa em cadeia que você tem que ser cuidadoso, o que você faz para um tem que fazer para o outro. Toda vez que alguém me pede uma coisa, eu penso se poderei fazer para alguém que me peça o mesmo depois. Se eu acho que não dá, não faço. Você cria problemas quando faz. Os diretores da detenção diziam que preso é igual criança, você faz uma coisa para um e vem outro ‘Ah, você fez para ele, tem que fazer para mim também, por que ele é melhor do que eu?’
Você pretende continuar o trabalho voluntário na prisão? Por tempo indeterminado. Não pretendo parar com esse trabalho. Estou com um pouco de saudade da cadeia masculina. Nós temos considerado isso, o Valdemar (seu ajudante) e eu. Estou há muitos anos em cadeia feminina e distante das masculinas, então dá um pouco de vontade. Ou pelo menos alternar, porque eu fiquei muito ligado à penitenciária feminina, acostumado com as presas, e elas comigo. Eu vou uma vez por semana, às segundas-feiras, chego lá às oito e meia, e fico até umas duas da tarde. Não é nada especial, é um dia por semana só.